Para combater o impacto dos eventos climáticos extremos, é preciso, além de conter a mancha urbana, reconectar espaços verdes, como parques e corredores ecológicos. É como se recuperam ecossistemas naturais e suas funções de controle ambiental e regulação climática
O processo de desenvolvimento das cidades brasileiras foi orientado a partir de uma lógica de controle da natureza e de seus recursos. Seja em grandes capitais como São Paulo ou em Porto Alegre, uma série de intervenções visando ao manejo do meio ambiente foram empregadas para a consolidação das áreas urbanas, impactando diretamente para a modificação do funcionamento dos elementos naturais.
Entre as ações realizadas, estão: a canalização de cursos d’água, urbanização de áreas de várzea, avanço da mancha urbana em direção a regiões de proteção ambiental, impermeabilização do solo e a retirada de alta porcentagem da cobertura vegetal.
Na capital paulista, como por exemplo, um dos principais problemas que a cidade possui é o de alagamentos e inundações. A maioria dos setores que são atingidos por estes fenômenos estão localizados em regiões de várzea, ou seja, locais planos e suscetíveis a enchentes quando os rios e córregos transbordam.
Portanto, independentemente da ação de ordenamento empregada neste local, a região sempre apresentará cheias, pois é algo que está intrinsecamente ligado ao funcionamento dos arroios.
Em Porto Alegre, o mesmo processo de urbanização ocorreu. Na cartografia de 1916, disponibilizada pela SMAMUS (Secretaria Municipal do Meio Ambiente, Urbanismo e Sustentabilidade), é possível visualizar o curso natural dos rios com os seus deságues no Guaíba e, posteriormente, a canalização deles junto com o aterramento das margens da orla da cidade.
Tais ações geraram não somente uma mudança paisagística na região, mas também uma alteração estrutural e funcional, uma vez que a intervenção propiciou um aumento na velocidade da água nos leitos e disponibilizou áreas alagáveis para a construção formal de edifícios.
Dessa forma, para reverter o processo de concepção das cidades que desconsidera o funcionamento da natureza para a sua elaboração, intervenções devem ser promovidas pelo poder público com o intuito de reestabelecer elementos estruturadores e naturais.
Além disso, com o agravamento da crise climática, também deverão ser levadas adiante ações para proporcionar resiliência e diminuição de danos em desastres ambientais, ou seja, ações de mitigação.
Para isto, o presente artigo propõe uma zona de atuação que se constitui a partir do Centro Histórico até a orla de Porto Alegre e, uma outra, em nível da macro escala, ou seja, que abranja elementos que ordenem o funcionamento da paisagem natural.
À vista disso, como diretrizes de planejamento, as seguintes propostas foram elencadas: criação de zonas de ação para a mitigação dos efeitos de eventos climáticos extremos; sofisticação e manutenção da rede de drenagem urbana e de esgoto; conexão de matrizes verdes com sistema de parques e corredores ecológicos; contenção do avanço da mancha urbana em áreas de preservação ambiental; remoção da população em situação de risco na Ilha Pintada, Ilha da Casa de Pólvora, Ilha do Grêmio e Ilha do Pavão.
Na primeira escala, o território foi dividido em três zonas a partir das curvas de níveis da região, tomando como partido o desnível entre a Rua Duque de Caixas, que apresenta um dos pontos mais altos no centro histórico, e a Avenida Presidente João Goulart, ponto mais baixo, conforme imagem ao lado:
Na zona 1, área com a menor cota e que é suscetível a recorrentes inundações, deverá ser promovida uma elevada taxa de permeabilidade para que as águas que extravasam o limite da orla possam ser absorvidas pelo próprio solo em conjunto com a rede urbana de drenagem. Ainda no que tange a esta ação, a cobertura das edificações pode auxiliar nesse papel com o emprego de telhados verdes que armazenarão a água da chuva e diminuirão o volume que poderá se concentrar no nível térreo.
Inclusive, em 2022, a Prefeitura lançou o “Decreto de Sustentabilidade” que incentiva edifícios a adotarem estratégias ecológicas (Prefeitura de Porto Alegre, 2022).
Outro ponto é a criação de áreas alagáveis em regiões públicas, como em parques. A estratégia visa à constituição de “piscina urbanas” que em períodos de seca podem ser utilizadas pela população para fins recreativos e, em épocas de cheias, possuirão a função de armazenar a água que extravasa o leito dos rios.
Na cidade de Jinhua, na China, foi utilizada estratégia semelhante na construção do parque Yanweizhou. A tática protege zonas residenciais e comerciais de serem atingidas por fortes tempestades e enchentes. No Brasil, Curitiba utilizou de mesmo recurso no Parque Barigui para proteger setores habitacionais (G1, 2020).
No que tange às vias, além do emprego de pisos drenantes como mencionado, os jardins de chuva podem ser fortes aliados para o aumento da permeabilidade do solo, criando áreas ajardinadas nos passeios públicos e aumentando a cobertura vegetal do município, fator que, nas estações com alta temperatura, poderá auxiliar na diminuição das ilhas de calor (1).
Por último, a barreira física localizada nas docas do Cais Mauá deverá ser modernizada para elevar o nível de proteção das áreas urbanas. Um projeto com este objetivo já foi apresentado pelo Consórcio Revitaliza, de acordo com apresentação divulgada pelo Governo do Estado (Revitaliza, 2021).
Na zona 2, faixa de transição, poderão ser implantadas as estratégias de permeabilidade do solo e cobertura vegetal. Isto, por si só, auxiliará na drenagem das águas.
Na zona 3, local que possui as cotas mais altas, podem ser consideradas como zonas seguras do centro justamente pela sua altura. Na cheia que ocorreu na primeira semana de maio, tais locais ficaram protegidos das águas devido ao nível das ruas.
Dessa forma, os investimentos públicos podem ser focados no primeiro e segundo setores. Todavia, é interessante que as estratégias de drenagem sejam implantadas posteriormente nesta região para diminuir o volume de água que irá atingir as outras faixas.
A segunda escala de atuação abrange a criação de um sistema de infraestrutura ambiental que impacte estruturalmente o funcionamento e a ligação das áreas vegetadas.
De acordo com Cormier e Pellegrino (2008, p. 128) a partir da tradução de Benedict e McMahon (2006), o conceito de infraestrutura verde é definido como: “uma rede de espaços interconectados, na escala do planejamento urbano e regional, pode ser vista como uma ‘infraestrutura verde’, composta de áreas naturais e outros tipos de espaços abertos que conservam os valores dos ecossistemas naturais e suas funções como mananciais, controle ambiental, regulação climática, recreação e lazer, provendo uma ampla gama de benefícios para a sociedade”.
Deste modo, foi proposta a seguinte interligação espacial entre matrizes verdes, parques e corredores ecológicos com o objetivo de constituir um sistema, conforme mapa abaixo:
Como apresentado na imagem, é proposta a interligação entre as áreas do Pico da Colina e suas intermediações até o arquipélago de ilhas ao leste da cidade. Essas regiões, segundo o zoneamento, estão enquadradas como “Áreas de Proteção do Ambiente Natural”. Assim, já são consideradas pela administração pública como locais importantes de serem preservados. Entretanto, para a constituição de um ecossistema entre esses espaços, deveria haver uma interligação entre eles, fator que não está previsto na legislação atual.
Portanto, como proposição, são identificadas as principais superfícies com vegetação no perímetro urbano, como o Parque Farroupilha, Parque Moinhos de Vento e Jardim Botânico, e, a partir da delimitação dessas regiões, sugerida a criação de corredores verdes em eixos importantes, como a Avenida Protásio Alves e a Avenida Ipiranga, que farão a conexão entre essas duas escalas.
Essa ação não apenas criará uma unidade entre os espaços, mas desempenhará o papel de reconstituir o ecossistema da cidade, uma vez que a ligação física promoverá a circulação de animais, polinização de espécies e reconstrução de cursos d’água.
A retirada das famílias de áreas de risco localizadas no Bairro Arquipélago é de extrema importância, pois, são regiões de várzea, logo suscetíveis a recorrentes enchentes. Ainda segundo o zoneamento, essas localidades estão na macrozona “9 - Parque Estadual Delta do Jacuí”. Isso significa que qualquer construção residencial nessas áreas está prejudicando o funcionamento e preservação do espaço.
Dessa maneira, como concepção para o setor, é sugerido o investimento na conservação do parque com a promoção do ecoturismo. Esse projeto poderá potencializar a intervenção urbana da Orla do Guaíba, que hoje é um dos espaços de lazer mais utilizados na cidade, realizando a conexão das localidades por meio de transporte marítimo, interligando continente e ilhas.
Por fim, para criar uma materialização simbólica das intervenções realizadas na cidade, vale a implantação de um projeto âncora que represente as ações espalhadas pelo território.
Um ótimo local para a intervenção é entre a Rótula das Cuias e o Arroio Dilúvio, trecho dois da orla, que já possui proposta desenvolvida pela Cheetah Consultoria e que foi escolhida pela Prefeitura. No entanto, ao acertar na seleção do local para o plano de intervenção e de alguns usos como o centro de convenções, anfiteatro e open mall (para viabilidade econômica), a gestão pública erra em parte das apropriações.
Ao invés de tomar como partido de projeto todo o contexto histórico de canalização do Arroio Dilúvio, realização de uma conexão direta com a paisagem do Guaíba e proposição de espaços de infraestrutura verde, como os jardins esponjas, foi indicada para o local a construção de uma marina pública, farol com mirante e um museu aquário, mesmo com boa parte das águas da capital encontrando-se poluída.
O projeto possui orçamento de 400 milhões de reais e previsão de início dos leilões para o segundo semestre deste ano, segundo matéria veiculada em GZH (2023). Ainda de acordo com este veículo, Ana Pellini, secretária municipal de parcerias, foi questionada quanto ao impacto das cheias de novembro de 2023 no interesse do setor privado para o arremate do projeto. A gestora afirmou que não crê que a enchente possa afetar o leilão: “Hoje está alagado, mas amanhã já não está mais”.
Passados seis meses desta entrevista, a cidade teve a sua maior inundação desde 1941. Portanto, o projeto para esta área deve, no mínimo, abarcar questões ambientais no seu escopo, pois, do contrário, não será viável para o uso público. Quanto mais para o setor privado.
Assim sendo, investir os recursos do Estado em ações estruturadoras para a reconstituição do ecossistema presente na cidade é uma estratégia de longo prazo, mas que garantirá que a natureza se autorregule e que diminua a probabilidade da ocorrência de eventos climáticos extremos.
Até que haja a reestruturação, a alocação de verba para a viabilização de ações de mitigação de danos também é importante, uma vez que deixará o município preparado para possíveis emergências como as vistas nas últimas semanas.
Portanto, cabe à sociedade demandar por propostas com este objetivo e realizar a constante vigilância dos governantes para que tais ações saiam do campo das ideias e consigam se materializar no espaço concreto.
Bruno Diniz é arquiteto e urbanista formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. No meio acadêmico desenvolveu pesquisa científica voltada para a análise urbana do conjunto habitacional Jardim Edith via Mackpesquisa, além de ser um dos autores do livro “Sustentabilidade em Projetos para Urbanização de Assentamentos Precários no Brasil”. Atualmente, atua na consultoria de certificações para empreendimentos eficientes e sustentáveis.
Crédito da foto da página inicial: Gilvan Rocha/Agência Brasil
Nota:
(1) 1Ilha de calor é um fenômeno causado pela modificação do meio natural pela ação antrópica. Elas provocam o aumento da temperatura em zonas das cidades onde ocorreu um intenso processo de impermeabilização e perda da cobertura vegetal, transformando zonas úmidas em locais secos, intensificando, portanto, a sensação térmica devido a radiação solar que não é absorvida pela cobertura vegetal, mas sim refletida pelo asfalto.
Bibliografia:
BENEDICT, Mark A.; McMAHON, Edward T. Green infrastructure Linking landscapes and communities. Washington, D.C.: Island Press, 2006.
CORMIER, Nathaniel S.; PELLEGRINO, Paulo Renato Mesquita. Infraestrutura Verde: uma estratégia paisagística para a água urbana. Paisagem e Ambiente, v. 25, p. 127142, 2008. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.23595361.v0i25p127142
DANIEL MÉDICI (Brasil). G1. Cidades-esponja: conheça iniciativas pelo mundo para combater enchentes em centros urbanos: parques alagáveis, praças-piscina e telhados com jardins estão entre medidas adotadas por cidades chinesas, europeias e americanas. No Brasil, São Paulo e Belo Horizonte tiveram perdas provocadas por chuvas em 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/02/16/cidades-esponja-conheca-iniciativaspelo-mundo-para-combater-enchentes-em-centros-urbanos.ghtml. Acesso em: 03 maio 2024.
EQUIPE ARCHDAILY (Brasil). Archdaily. O que é uma cidade-esponja e como ela funciona. 2022. Disponível em: https://www.archdaily.com.br/br/979435/o-que-e-uma cidade-esponja-e-como-ela-funciona. Acesso em: 03 maio 2024.
GHZ. Fábio Schaffner. Após inundações, prefeitura de Porto Alegre altera projeto do trecho 2 da Orla. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/portoalegre/noticia/2023/11/apos-inundacoes-prefeitura-de-porto-alegre-altera-projeto-dotrecho-2-da-orla-clpcxb6mt003k015evstyj1qj.html. Acesso em: 09 maio 2024.
PORTO ALGRE (Município). Decreto nº 21.789, de 10 de janeiro de 2020. Decreto de Sustentabilidade. Porto Alegre, RS, 19 dez. 2022. p. 1-4. Disponível em: https://prefeitura.poa.br/sites/default/files/usu_doc/cartadeservicos/Decreto%2021.789_022%20-%20Certifica%C3%A7%C3%A3o%20Sustent%C3%A1vel.pdf.
Acesso em: 04 maio 2024.
SANTOS, Maria Fernanda Nóbrega dos; ENOKIBARA, Marta. INFRAESTRUTURA VERDE: CONCEITOS, TIPOLOGIAS E TERMINOLOGIA NO BRASIL. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2021. 15 p. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/paam/article/view/174804/171553. Acesso em: 02 maio 2024.
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RIO GRANDE DO SUL. Prefeitura de Porto Alegre. Secretaria Municipal de Meio Ambiente e da Sustentabilidade. Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Ambiental. Porto Alegre: Prefeitura de Porto Alegre, 2019. 28 p. Disponível em: https://urbanismodrive.procempa.com.br/geopmpa/SPM/PUBLICO/PDDUA_ATUAL/PDF/guia_pddua.pdf. Acesso em: 09 maio 2024.
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