A pistolagem da deputada federal revela o modo de ser do bolsonarismo como micropoder, um microfascismo que apela para a rivalidade entre os poderes e se auto impõe a competência de executar, legislar e julgar o cumprimento da ordem
Ao chegar em casa pela manhã, no dia de eleição, me deparo com o registro policialesco do dia anterior: “A Deputada Federal Carla Zambelli protagoniza bang–bang pelas ruas de São Paulo”. Segundo consta, a perseguição de Zambelli e seus capangas com armas em punho a um homem negro foi motivada por troca de ofensas com origem na disputa eleitoral.
Nos vídeos, amplamente divulgados nas redes sociais, os vários ângulos possíveis oferecem um prato cheio para ambos os lados torcerem os fatos em favor do argumento do “extremismo” do contraditório. Em sua defesa, vossa excrecência, a reeleita deputada alega atuar com o poder de polícia diante de crime flagrante. Não podendo ela mesma efetuar a prisão, sua arma em punho seria apenas para garantir que o homem do outro lado do cano não fugisse do local.
Esperando as autoridades competentes, Zambelli invade o bar onde o homem se abrigou contra as ofensivas balísticas da deputada e seus capatazes. Uma cena grotesca que deveria permanecer nos registros cinematográficos do Faroeste, a terra cuja lei é a bala e quem legisla, julga e executa é a rapidez do tambor ao liberar o artefato contra o corpo adversário.
Como o algoz de João de Santo Cristo, o tal Jeremias, homem de posses e propostas indecorosas, Zambelli ofereceu a possibilidade da retratação, um pedido de desculpas gravado para ser exposto como o sucesso da autodefesa do cidadão de bem contra os “cúmplices do comunismo de Itararé”.
Carla Zambelli com arma em punho em rua de São Paulo. Foto: Reprodução.
A ameaça armada é apenas o prólogo da manifestação miliciana da deputada. Ao ser perguntada sobre o descumprimento da lei eleitoral sobre a posse de armas em atos de campanha, a legisladora alega não ter a missão de cumprir com a determinação legal, pois ela mesma quem legisla. O Supremo deveria, então, observar seu competente ato de autodefesa censurando seu próprio dever de juízo a respeito do descumprimento da lei.
A pistolagem da deputada revela o modo de ser do bolsonarismo como micropoder, um microfascismo que apela para a rivalidade entre os poderes, atribuindo à execução da ordem, a competência autolegitimada de legislar e julgar o cumprimento da ordem.
Desdobrando a narrativa, verificamos que a motivação da incursão armada de Carla Zambelli foi a frase “te amo espanhola”, que faz referência direta ao episódico conflito entre Zambelli e Joice Hasselmann durante uma sessão da Câmara dos Deputados, na qual a ex-bolsonarete que há pouco havia debandado da turma de Bolsonaro, revelou os bastidores do gabinete presidencial: segundo Joice, o futuro ex-presidente alardeou em tom cômico os rumores sobre a atuação de Carla Zambelli como prostituta na Espanha, antes de ingressar na cena pública como porta-bandeira do desfile antipetista. Esse episódio marcou a cisão entre a ala da direita arrependida e a parcela que permaneceu agarrada nas botas do capitão.
Os antigos bolsonaristas tiveram pouco sucesso nas tentativas de reeleição, os que permaneceram rondando o Palácio da Alvorada preservaram seus postos, inclusive alterando o perfil da parcela bolsonarista no Congresso Nacional: do antipetismo, o bolsonarismo preservou o discurso apocalíptico, introduzindo elementos de articulação política que vão muito além da oposição partidária.
O governo Bolsonaro é resultado de uma aposta malograda das classes médias na moralização da política como condutora de uma reorganização do estamento social.
Segundo a reza do bom cidadão, de arma na cintura, bíblia na mão e cheiro de roça na sola da botina, a liberdade é um espaço inato ao ser e a razão de ser da sociedade é extensão dessa liberdade individual, reflexa nos costumes e tradições que forjaram o mundo como ele é.
Recompor a moral política simboliza um retorno ao Éden, passando a boiada na árvore do conhecimento e trocando as espadas de fogo pelos cartuchos de pólvora como protetoras da criação divina.
Esse retorno supõe a separação do povo eleito que embarca na arca do Jair para se proteger da fúria diluviana prometida pela “verdade libertadora”.
Quando vamos a fundo nas raízes do bolsonarismo, percebemos que essa estética moral embrulha as insatisfações de uma classe média antissocial e antinacional aos interesses do imperialismo financeiro, amparados pelo pensamento político do falecido Olavo de Carvalho, cuja principal obra propõe nas linhas, entrelinhas e letras miúdas, o referido retorno ao Éden através da transformação do “Jardim das Aflições” moderno numa espécie de prelúdio do juízo final, onde os justos são separados dos pecadores.
Descendo as escadas da confusão olavista, verificamos o sucesso de seu projeto político: o levantamento de uma direita que atira contra as conquistas sociais da modernidade, propagando a apocalíptica separação entre os defensores da família, da pátria e da liberdade e os malignos poderes da revolução social em cursar uma oposição contra as desigualdades e a favor da autonomia da consciência.
A trinca que ergueu o palanque para o até então inexpressivo deputado Jair Bolsonaro se completa a partir da operação Lava-Jato, um golpe político dentro das “quatro linhas” da justiça. Em recente entrevista, a dupla da Lava-Jato, os senhores Sergio Moro e Deltan Dallagnol confessaram a participação do FBI nas investigações.
A responsável pela jurisdição da polícia americana, Leslie Backschies, não poupou detalhes ao descrever o mecanismo pelo qual os Yankees se arrogam a autoridade de zelar pelas democracias ao redor do mundo, articulando, via operações militares ou judiciais, processos de destruição política, moral e econômica de tudo aquilo que julgam ofender a ordem democrática ocidental. Um dos efeitos imediatos da Lava-Jato foi a perda de valor de mercado e participação comercial das principais empreiteiras brasileiras, além, claro, da Petrobras.
Ao penalizar as empresas, juntamente com seus dirigentes, isso permitiu a entrada de empreiteiras norte-americanas no mercado brasileiro, além da aquisição das ações dessas empresas na Bolsa de Nova York por cerca de 4 vezes menos do que a cotação atual.
Os investimentos no Pré-Sal que prometiam a autossuficiência do Brasil em energia foram interrompidos e trocados pela lógica financeira da paridade de preços internacional cujos lucros são vazados para o exterior na forma de dividendos e o Brasil permaneceu submetido aos desfavores da finança internacional no campo energético.
Não é preciso lembrar que o fator essencial da escalada inflacionária recente foi a política de preços praticada pela gestão irresponsável da Petrobras e pelo esvaziamento dos estoques reguladores de preços básicos.
Com frequência, ao descascarmos a história oficial, encontramos a laranja previamente cortada na diagonal oposta dos interesses coletivos, sociais e populares. Enquanto a queda do petismo dos arautos do populismo plutocrático interessou às classes médias, essa falsa elite inconformada com a ascensão salarial de seus “serviçais”, também derrubou os resquícios da competitividade industrial brasileira, seguindo os traços e passos das intervenções norte-americanas no Oriente Médio, Venezuela, Bolívia etc.
Se a saída para a democracia capitalista suspensa nos braços da ditadura dos sistemas financeiros globais não pode ser negociada via mecanismos de mercado, a política e o aparelho militar do Departamento de Estado norte-americano entram em campo, bombardeando os nacionalismos desvinculados dos interesses das grandes empresas registradas em Wall Street.
O que tentei destacar recuando para as raízes sociais, ideológicas e políticas do bolsonarismo é que esse fenômeno está longe de ser acidental ou incidental, mas é reflexo tão espesso, quanto ameaçador dos tempos que vivemos.
Por um lado, o bolsonarismo projeta o que há de mais atrasado e antiquado nas ideologias que buscam harmonizar a história em torno da necessidade de manutenção de uma ordem idealista, um desejo que flutuou livremente de São Tomás de Aquino até Edmund Burke, chegando ao bolsonarismo através do olavismo cujas repercussões para a política de governo foram “aditivadas” pelo Posto Ipiranga, o ministro Paulo Guedes, filhote da ditadura chilena e do liberalismo de Chicago.
Por outro lado, o fenômeno Bolsonaro, como recentemente reprisado na Itália com Giorgia Meloni, caracteriza o estado avançado de degeneração da política como forma de ação comunicativa entre os meios e fins da organização social urdidos na figura do Estado Moderno.
A intimidade entre o Estado e a finança capitalista está na origem do próprio processo civilizatório moderno, inclusive na modulação das relações de poder que permitiram o ingresso hegemônico dos valores do trabalho e da concorrência como base da ideia de liberdade individual, fragmentando a formação de modos de organização social a partir da consciência coletiva na atuação violenta do Estado como regista do despotismo característico do modo de vida moderno: a tensão entre a privacidade dos direitos e a necessidade social do cumprimento dos deveres ancorados no arquétipo frágil da agregação social em torno de uma cidadania que cada vez menos garante a sobrevivência individual e a harmonia coletiva.
Desta feita, a ideia de ordem permanece escondida nas determinações nada democráticas das formas de geração e distribuição dos meios de subsistência, fracionando a existência individual em séries intermináveis de conflito entre a personalidade e a identidade.
O fascismo na microesfera do cotidiano imprime a personalização do ser em permanente conflito com o não-ser, produzindo identidades privadas de qualquer meio de conexão coletiva que não seja pelo egóico ato da concorrência, da diferenciação social pelo dinheiro e pelo consumo.
O registro de padrões socialmente aceitáveis de estética, moral, desejo etc. sacramenta uma via de mão única para a manutenção da ideia de ordem social, quando a produção de interesses comuns pela política se torna inviável: a violência como a mais primordial forma de sujeição da forma de vida aos costumes e tradições associadas à pureza, ao espaço incorruptível da diferenciação como liberdade, ao invés da vazão das identidades como conquista de autonomia em relação aos padrões sociais, destruindo os moldes do bom cidadão que vive pelo trabalho, trabalha pelo consumo, consome para assumir distinção, se apresenta como distinto para exaltar sua deferência aos bons costumes, caso contrário, façamos a ordem à bala.
O espetáculo balístico de Carla Zambelli nos serve para refletir sobre as trincheiras construídas pelo ódio ao contraditório, pelo desrespeito ao coletivismo, pela individualização da responsabilidade pela pureza, pela ordem, pelo belo.
Quando ultrapassada a trincheira, São Paulo vira palco de Faroeste, o dinheiro e as armas constroem “novos Auschwitzs” para abrigarem os impuros, imorais, pecadores enquanto aguardam pelo juízo final. Ou morrendo à bala, ou vendendo bala no sinal.
Nathan Caixeta é economista, mestre em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.
Crédito da foto da página inicial: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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