Somente a manipulação cretinamente oportunista da ambiência de fragilização emergida daquela conjuntura poderia justificar o conjunto dos péssimos feitos – desmandos da Lava Jato, sepultamento de empresas saudáveis, desmoralização da classe política
Dez anos depois das manifestações de junho de 2013 e as tentativas de compreensão do fenômeno ainda vão se multiplicando. Conceitos e polêmicas seguem surgindo, dúvidas e incompreensões continuam se avolumando e ensaios de respostas também. Mas o mais consequente parece ser, ao mesmo tempo, o mais desalentador e aduz reconhecer que daquelas noites de junho resta tudo, só não 2013.
O primeiro de janeiro de 2023 anunciava o fim de junho de 2013. O retorno do presidente Lula da Silva ao Planalto prenunciava encerrar uma era de desatinos brasileiros inaugurada naquele junho. Os oponentes do resultado saído das urnas de outubro de 2022 expressavam, em janeiro de 2023, 45% da população. O país seguia claramente dividido. Mas frações do povo entregando a faixa presidencial em lugar do presidente ausente indicavam novos tempos.
Novos tempos que duraram dias. Uma semana para ser mais preciso. As tormentas brasilienses do 8 de janeiro que reabilitaram toda a incontinência do imponderável emergido naquelas noites daquele junho de 2013.
Desde o princípio daqueles protestos de 2013 que estava bem claro que não eram só pelos vinte centavos. Algo muito complexo e tangido por forças muito profundas estava em marcha. Era, inicialmente, um movimento de negação das ações públicas de representantes políticos locais, estaduais e federais constituídos. Não demorou a aquele sonido argentino de desesperança entronizado no que se vayan todos começar a rondar casas, ruas e avenidas. Nessa ambiência, execrar a política, políticos e o fazer político foi virando o pão de cada dia de todas as conturbações.
Dez anos se passaram e o ar de suspeição emergido nesse momento não foi dissipado. Em contrário, foi ampliado com o impeachment de 2016, a prisão do presidente Lula da Silva em 2018, a eleição e gestão do presidente Jair Messias Bolsonaro e o retorno do presidente Lula da Silva às entranhas do poder em outubro de 2022.
Junho de 2013, dez anos depois, virou um evento pegajoso que não passa nem quer passar. A sua dimensão nacional, por si só, já é fantástica. Mas a sua dimensão mundial não pode ser desconsiderada.
Quem acompanhou essa efeméride simplesmente internamente deixou de notar a sua abrangência verdadeiramente planetária. A aceitação moral da saída do Reino Unido da construção europeia, a reiteração da Primavera Árabe com a perpetuação do presidente Bashar al-Assad no poder ultrapassando redlines, o império da pós-verdade, a eleição de um verdadeiramente bonifrate para presidir a principal potência do planeta, a eleição de um insistentemente estúpido para a Presidência do Brasil e a eleição de um literalmente palhaço para governar a Ucrânia participam do mesmo tempo do mundo: o tempo de humilhação e derrota da política.
As noites brasileiras de junho de 2013 alçaram o Brasil a esse novo tempo do mundo. Um novo tempo tangido pelos efeitos deletérios do 11 de setembro de 2001 e consolidado pelas externalidades negativas da crise financeira mundial de 2008.
Às portas do primeiro quarto do novo século, já está evidente que a precipitação do ingresso da China na Organização Mundial do Comércio em dezembro de 2001 impactou estruturalmente o mundo muito mais que qualquer outro evento decorrente dos ataques de 11 de setembro de 2001. Desde então que parte substantiva dos fluxos políticos, financeiros e econômicos mundiais passou a, decididamente, circular pelos países do hemisfério sul liderados pelas múltiplas interações de oferta e demanda de chineses, indianos, africanos, asiáticos e latino-americanos.
Às vésperas da eclosão da crise financeira de 2008, as principais financeiras do mundo indicavam que o PIB desses países do sul não tardaria a representar 50% do PIB mundial. Era a primeira vez, após a Revolução Industrial, que países não centrais, não europeus nem norte-americanos, aquinhoavam força para decidir sobre o destino do planeta. Basta se rememorar que, quando das tratativas de superação contábil da crise financeira de 2008, o protagonismo dos países BRICs no interior do G20 foi tão ou mais relevante que o dos países do histórico G7.
Tudo isso forjou uma interdependência entre esses países ricos e não tão ricos em níveis de sinergia jamais vistos. Para o bem e seu contrário, essa interdependência ultrapassou o mundo da economia, da política e das finanças e começou a integrar e tornar comuns angústias sociais em toda parte. Mostras fortíssimas dessa integração vieram à tona com as novas ondas de protestos após de 2008.
A reação imediata ao salvamento de empresas too big to fail nos Estados Unidos e na Europa foi a constituição de movimentos tipo Occupy Wall Street ou Occupy Puerta del Sol em todas as partes. Nenhuma cidade grande ou média do Brasil ou pelo mundo passou incólume a protestos dessa qualidade.
Conscientemente ou não, o conjunto dessas manifestações reconhecia a gravidade do rebaixamento do poder de compra e das condições gerais de vida em países ricos e não tão ricos. Seguimentos de classe média, após a crise financeira de 2008, foram inteiramente achatados, empobrecidos, esmagados. O desemprego massivo, que já vinha alarmante, foi somado ao ruidoso fenômeno da uberização dos mundos do trabalho. Os lúmpens e os subproletários – na Europa, nos Estados Unidos e no Brasil – jamais foram tão crescentemente abundantes.
Não foram necessariamente somente esses desvalidos sociais que invadiram majoritariamente as ruas brasileiras naquelas noites de junho de 2013. Mas foi, essencialmente, a sensação e o medo de vir a ser. Sensação e medo que jamais foram conselheiros.
Somente a manipulação cretinamente oportunista dessa ambiência de fragilização emergida daquela conjuntura poderia justificar o conjunto dos péssimos feitos – desmandos da Operação Lava Jato, sepultamento de empresas idôneas e saudáveis, estraçalhamento do sistema partidário, hipertrofia do judiciário, desmoralização da classe política, nós contra eles como regra de sociabilidade etc. – nestes dez anos.
Os bolsonarismos jamais existiriam sem essa manipulação. Esse monstrengo que virou a dita coalizão brasileira à esquerda também não.
Das noites de junho de 2013 resta tudo, só não 2013.
Resta saber quando essa agonia vai encontrar algum fim.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela USP, pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP e professor na UFGD.
Crédito da imagem da página inicial: Fábio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil
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