A principal inovação do Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados é permitir condições diferenciadas de pagamento em um formato mais flexível, com uma visão menos fiscalista e mais pró-investimento
O Propag aprovado no Congresso já nasce ambicioso em seu nome: Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados. Mais adequado seria tratá-lo pelo que realmente é na prática: mais um alívio orçamentário para governos estaduais em que o volume de dívida já supera significativamente sua capacidade arrecadatória. Nesses casos, há o risco crescente de um esquema “ponzi”, que cria uma ilusão de saúde financeira: financia-se com a própria rolagem da dívida que só cresce até o momento que estoura e exige uma nova renegociação para manter a mesma lógica com sobrevida.
Atenção, quando se afirma que se trata mais de um alívio não se pode ignorar as inovações do programa, que, se forem bem utilizadas, abrem possibilidades promissoras.
De início, já se destaca o alongamento para período de 30 anos, o que corretamente coloca uma temporalidade de longo prazo. Isso permite o ajuste ter uma dimensão estrutural, ao invés de reiterar ad nauseam cobrança de cortes de gastos abruptos e inconsequentes pelo “garrote” do credor da ocasião. O desafio é verificar se, com o tempo, a oportunidade para um ajuste estrutural vai ser aproveitada, ou se apenas será adiada por um tempo maior a cobrança por duros pacotes de austeridade.
No mesmo sentido, é positivo o cronograma gradual de prestações crescentes a cada ano para os entes já no Regime de Recuperação Fiscal - RRF, de modo que as parcelas sejam 100% só no quinto ano. Essa “escada” permite também caminhar no sentido de uma temporalidade menos curto prazista. Só o tempo dirá se ela vai ser aproveitada para uma reorganização estratégica ou se apenas servirá para tirar o “bode da sala” e voltar a colocá-lo daqui a alguns anos.
Além disso, o mais importante é a possibilidade disruptiva que o Propag oferece: ser um substitutivo ao próprio RRF. Nesse aspecto a questão não é apenas uma atualização formal. De fato, se trata do esboço preliminar de uma nova ideologia por trás da proposta.
O RRF foi um arcabouço que priorizava o interesse do credor em ter a garantia de um fluxo de pagamentos quando os arrestos judiciais já não produziam efeito. Ou seja, nunca se tratou de fato de ter qualquer preocupação com a sustentação fiscal dos governos estaduais. Sua lógica de “recuperação” era, na verdade, retirar autonomia federativa e intervir na gestão financeira dos estados de maneira bastante abusiva para que aquele fluxo fosse obtido. Isso vem sendo feito sem medir as consequências sobre as travas que impuseram junto da perda progressiva de direitos do funcionalismo e do impacto negativo em despriorizar outras políticas públicas.
Já o Propag é um grande acordo político costurado pelo Legislativo federal, buscando acomodar os mais diversos interesses de todos os governos estaduais, inclusive daqueles que não possuem altos níveis de endividamento.
De fato, a ideologia se aproxima muito mais de um pacto sob o princípio da solidariedade federativa que, inclusive, visa a criar uma redivisão do orçamento federal associada àqueles fluxos de pagamentos da dívida estadual (além do acesso aos recursos provenientes da entrega de ativos). Nesse sentido que se inova, por exemplo, com a criação do Fundo de Equalização.
Do lado do credor, governo federal, isso não significa necessariamente uma aposta ruim. Se antes a preocupação era o retorno de curto prazo sobre administrações exauridas financeiramente e sempre sob risco de interromper pagamentos e judicializar, agora o desafio é como garantir o retorno de médio e longo prazo. Isso significa o desafio de se criar uma nova cultura de monitoramento menos punitivista e não limitada somente aos dados fiscais.
Passa a ganhar relevância acompanhar também indicadores de desempenho na área do desenvolvimento, em especial, aqueles mais associados a avaliar capacidade de sustentação de taxas de crescimento econômico (exemplo, resultados fiscais estruturais) e a ganhos de produtividade nas diversas economias estaduais.
Nesses termos, cabe destacar a principal inovação do Propag: condições diferenciadas de pagamento em um formato mais flexível, o que permite trocar o serviço da dívida por diversas alternativas a ponto de poder se chegar até a situação de juros zeros (mas sem perdão, ou seja, ainda mantendo intocado o estoque do principal e sua correção monetária).
Em particular, na esteira da proposta inicial do Ministério da Fazenda intitulada “Juros por Educação”, trata-se de abater a cobrança de juros em troca de investimentos em setores socialmente prioritários (inicialmente, ensino técnico na formulação original, mas agora já se estendendo para diversas outras áreas da política pública).
Um ponto interessante é que não haverá modelo único, cada governo estadual que aderir vai definir sua proposta objetivando chegar, no limite, a juros zeros. Cabe enfatizar o quanto o último Plano de Recuperação Fiscal - PRF do Estado do Rio de Janeiro foi uma contribuição pioneira.
Mesmo sob o arcabouço muito restritivo do RRF, sua redação já buscava “por dentro” superar aquele modelo em prol de uma visão menos fiscalista e mais desenvolvimentista. Por essa razão, e sem surpresas, foi inicialmente rejeitado pelo credor para, logo depois, ser aceito à medida que ficou claro que se sustentava tecnicamente e os temores eram basicamente ideológicos por suas inovações.
No comparativo do último PRF fluminense e do Propag, então cabe destacar o que este último avança, o que possui de mais facilidades operacionais, e o que ainda ficou no meio do caminho para uma solução efetiva. Ou seja, defende-se que o Propag é uma evolução na mesma direção da redação do último PRF fluminense, mas este ainda possui contribuições inovadoras que o Propag ainda não adota. Portanto, sua contribuição pioneira ainda vale ser revisitada para que se avance mais.
Primeiro, o Propag e o último PRF fluminense possuem um princípio geral com o mesmo sentido estratégico: ambos são pró-investimento como saída de uma crise fiscal. Isso é, sem dúvida, um importante aspecto de originalidade que desafia os limites antes impostos pela visão mais fiscalista.
Especificamente, volta-se para a sustentação fiscal que depende não de se renunciar a executar parte da política pública para fazer “poupança”, mas, ao contrário, colocar o desafio de fazer com mais qualidade o gasto público a fim de garantir um resultado fiscal estrutural.
Segundo, o Propag oferece mais facilidades operacionais para sustentar uma estratégia de ajuste de viés mais desenvolvimentista. Em especial, a abertura de espaço fiscal para financiar medidas anticíclicas que no último PRF fluminense dependia apenas do esforço próprio (capitalização de ativos estaduais, maior esforço de fiscalização etc.).
Já no Propag, opções antes negadas estão à disposição, como repassar créditos de dívida ativa para o governo federal na amortização inicial de parte do principal e, sobretudo, como já mencionado antes, poder reverter o próprio serviço da dívida em novos investimentos estaduais.
Terceiro, é preciso ter claro que o Propag ainda fica no meio do caminho de uma solução. Afinal, permite “queimar” recursos que poderiam ser usados para aumentar os investimentos já nas alternativas de ativos para amortização inicial (por exemplo, a utilização do Fundo de Desenvolvimento Regional, criado pela Reforma Tributária, e a transferência de receitas associadas à exploração de recursos naturais). No caso dos royalties e participações especiais, ainda soma-se o problema que, se “errarem na mão”, pode ampliar o risco de antecipar uma nova reforma da previdência estadual.
Além disso, o mais grave é o Propag ainda não estar articulado a dar obrigatoriedade para nenhum plano estratégico de desenvolvimento estadual. O histórico anterior ao estouro da crise fiscal fluminense de 2016/2017 demonstra o quanto pode ser temerário alavancar um ciclo de investimentos públicos com baixa institucionalidade no que se refere a metas claras, a gestão de resultados e controle social.
Portanto, abrir oportunidade para investir sem exigir um sólido planejamento indutor pode reanimar futuramente os ânimos das viúvas dos pacotes de austeridade que esperam qualquer insucesso para defendê-los como única alternativa responsável. Afinal, no Propag estão mantidos dispositivos que sustentam um “teto” de gastos primários similar àquele do governo federal.
Cabe lembrar que o último PRF fluminense desdobrou-se na realização do Plano Estratégico de Desenvolvimento Econômico e Social – Pedes. Ainda que hoje sua integração à agenda fiscal esteja pouco aproveitada pela atual gestão estadual, essa combinação é uma contribuição essencial para o debate nacional. Isso porque evoluir além da redação mais recente do Propag é superar definitivamente a procura apenas por alívios orçamentários.
O Propag oferece esperanças ao mesmo tempo que preocupações. Ele é mais atento à questão federativa, mas não afasta a possibilidade de retrocessos se não avançar mais a ponto de consolidar uma visão estratégica.
É preciso, de fato, que o arcabouço esteja baseado textualmente no fortalecimento das estruturas de planejamento público para que os estados com dificuldades financeiras ajustem seus compromissos de forma sustentável. Especificamente, é preciso que a renegociação de dívidas esteja subordinada ao grau de compromisso com planos estratégicos de desenvolvimento.
Só a partir dessa exigência estará assegurada uma nova visão que garanta prioridade para a coordenação do gasto público federativamente, com diversos governos juntos construindo as missões de desenvolvimento, cruzando metas e avaliação de resultados e garantindo a participação social.
Crédito da foto da página inicial: Antônio Cruz/Agência Brasil
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