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Foto do escritorJoacir Rufino de Aquino

Agricultura familiar no Nordeste e suas perspectivas

Atualizado: 6 de ago.

Iniciativas ensinam que há um potencial empreendedor latente nas áreas rurais da região. A imagem do sertanejo ‘coitadinho’ não condiz com os casos de inovação e de diversificação. A grande seca de 2012-2017, sem migração e flagelados nas estradas, mostrou a capacidade de resiliência dessa população

A agricultura familiar é uma forma de produção e trabalho com presença marcante no campo do Brasil. Segundo os dados mais recentes do IBGE, de maneira agregada, existem 3,9 milhões de estabelecimentos rurais dessa categoria de produtor no país, os quais ocupam mais de 10 milhões de pessoas.


O universo de produtores familiares está distribuído em todo o território nacional. A maior parte, contudo, se concentra no Nordeste, onde foram contabilizados 1.838.846 agricultores familiares em 2017, ou seja, 47% do total nacional.


É pertinente sublinhar que a agricultura familiar nordestina registra particularidades sociais e geográficas que a singularizam quanto ao perfil desse público nas demais regiões. Isso acontece, por um lado, porque 73% do segmento é formado por produtores negros (pretos ou pardos), percentual bem acima da média do país (55%).


Por outro lado, cabe destacar que 74% do contingente familiar está localizado e desenvolve suas atividades produtivas nos plenos domínios do semiárido brasileiro. Essa área do Brasil, como se sabe, é caracterizada por condições climáticas adversas e pela ocorrência de eventos climáticos extremos, como foi a grande seca de 2012-2017, a maior das últimas décadas.


Apesar dos limites do meio físico, os estabelecimentos familiares nordestinos geram ocupação para mais de 4,7 milhões de pessoas e participam de maneira expressiva das lavouras cultivadas na área, sendo responsáveis pela produção local de: 62% do arroz em casca, 60% do feijão e 80% da mandioca. Além desses alimentos básicos, o setor responde na região por 48% dos rebanhos de bovinos, 72% dos caprinos, 70% dos ovinos e por 61% do leite de vaca.


O potencial produtivo da agricultura familiar regional tem chamado a atenção da sociedade. Isto ficou patente na I Feira Nordestina da Agricultura Familiar e Economia Solidária, que aconteceu em Natal-RN, no período de 15 a 19 de junho de 2022.

Na ocasião, a imprensa noticiou amplamente que os agricultores familiares da região conseguem produzir alimentos agroecológicos diversificados e com agregação de valor. Realmente, isto pôde ser testemunhado pelas centenas de pessoas que visitaram os stands da “grande festa da colheita”, mote central do evento.


O problema é que existe uma grande desigualdade interna na agricultura familiar brasileira e nordestina. No Nordeste as estatísticas censitárias indicam que a maioria do segmento (89% do total) é formada por agricultores familiares com potencial de enquadramento no chamado Grupo B do PRONAF, que inclui as parcelas mais pobres e vulneráveis.


Amontoados na base da pirâmide social do campo, esses agricultores familiares pobres apresentam resultados produtivos médios extremamente baixos, tendo sua sobrevivência dependente de rendas externas aos seus sítios, com destaque para os benefícios da previdência social rural e do Programa Bolsa Família (PBF).


Note-se que o quadro de pobreza e vulnerabilidade que ainda assola a maioria dos agricultores familiares do Nordeste, especialmente aqueles que fazem parte do numeroso Grupo B, não é determinado exclusivamente por fatores naturais. Claro que os efeitos das secas não podem ser negligenciados. Mas a culpa não é apenas da falta de chuva em determinados períodos. Na verdade, é possível argumentar que os produtores da região são bloqueados por “múltiplas carências de ativos” (acesso precário a terra, água, educação formal, assistência técnica, máquinas, crédito, meios de comunicação etc.).


Os dados do Censo Agropecuário 2017 corroboram as afirmações acima. Apenas para ilustrar, eles mostram, por exemplo, que 66% dos agricultores familiares nordestinos têm áreas de até 10 hectares. O acesso à água continua precário mesmo com os avanços do programa de cisternas e 93% não têm acesso a Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER). A taxa de analfabetismo atinge 42% dos chefes dos estabelecimentos, indicador que frustraria as expectativas do educador Paulo Freire se ele ainda fosse vivo, uma vez que o mesmo mostrou no início dos anos 1960 que era possível alfabetizar um adulto de forma contextualizada em 40 horas.


Já o uso de máquinas é extremamente reduzido. De fato, enquanto no mundo do agronegócio se fala em drones controlados a distância, robôs e inteligência artificial, menos de 2% dos agricultores familiares nordestinos possuem algum tipo de máquina (tratores, colheitadeiras, semeadeiras, adubadeiras), ou seja, ainda trabalham no sol forte do sertão no braço e com a enxada.


O acesso a tecnologias de comunicação também é precário, pois tabulações especiais do recenseamento do IBGE evidenciam que 51% do total não possuem telefone e 80% não têm acesso à internet, demonstrando a “exclusão digital” que marca o segmento.


As “múltiplas carências de ativos” sumarizadas aqui geram várias consequências negativas. Elas limitam a capacidades dos agricultores familiares desenvolverem meios de vida sustentáveis. Outra verdade inconveniente, muito distante dos casos de sucesso apresentados durante a I Feira Nordestina de Agricultura Familiar mencionada acima, é que uma parte do segmento não consegue produzir nem os alimentos suficientes para garantir seu próprio autoconsumo.


Com efeito, o II Inquérito da Rede PENSSAN revelou que o acesso pleno a alimentação abarcava apenas 16% dos domicílios de agricultores familiares nordestinos entre os anos de 2021 e 2022. Enquanto isso, 21% enfrentavam alguma situação de insegurança alimentar moderada e 23% estavam passando fome em situação de insegurança alimentar grave.


Diante desse cenário, agravado pelo desmantelamento das políticas de desenvolvimento rural desde 2016 e pela crise da COVID-19 nos últimos anos, os movimentos sociais do campo, governos locais e estaduais, bancos públicos de desenvolvimento têm buscado se mobilizar para fortalecer as estratégias locais dos agricultores visando a sua adaptação e convivência no contexto socioambiental em que estão inseridos.


Nesse sentido, vale mencionar a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) e suas ações de democratização do acesso a água por meio do programa um milhão de cisternas, bem como as 223 iniciativas de prefeituras que durante a pandemia desenvolveram políticas municipais visando a apoiar a produção e distribuição de alimentos saudáveis, conforme o levantamento pioneiro da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).


Também é digna de nota a iniciativa do Consórcio de Governadores do Nordeste no sentido de tentar firmar parceria com a China para produzir máquinas de pequeno porte adaptadas à realidade da agricultura familiar e de sistemas produtivos agroecológicos.


Igualmente importante tem sido a atuação do Banco do Nordeste do Brasil (BNB), com o Agroamigo. Esse programa, de 2005 a 2022, aplicou R$ 24,9 bilhões em pequenos contratos de microcrédito rural, apoiando centenas de agricultores, inclusive com duas linhas inovadoras criadas recentemente destinadas ao financiamento de energias renováveis e tecnologias digitais (Agroamigos Sol e Net).


Os recursos do Agroamigo, diga-se de passagem, são ofertados com juros e condições de pagamento diferenciadas adequadas à realidade dos agricultores do semiárido. Os níveis de inadimplência das operações são baixíssimos e quase metade do público atendido pelo programa é constituído por mulheres agricultoras, as quais investem os recursos obtidos em atividades ligadas principalmente a criação de animais, produção de frutas, legumes e verduras, artesanato, comércio e serviços.


Essas iniciativas ensinam que existe um potencial empreendedor latente nas áreas rurais do Nordeste. A imagem do sertanejo “coitadinho” não condiz com os casos de inovação e de diversificação identificados. A grande seca de 2012-2017, sem migração e flagelados perambulando nas estradas, também foi um indicativo de que a capacidade de resiliência da população regional melhorou e pode melhorar ainda mais.


A expectativa agora, com o lançamento do Plano Safra da Agricultura Familiar 2023/24 e seu volume recorde de recursos de R$ 77,7 bilhões, é que esse conjunto experiências pontuais existentes sejam fomentadas com a retomada da política de reforma agrária, acesso a água, ATER, crédito, compras governamentais de alimentos, entre outras medidas anunciadas.


O novo Plano Safra da Agricultura Familiar ampliou os limites de crédito para os agricultores familiares pobres e reduziu os juros para a produção de alimentos agroecológicos. Ademais, foram destinados R$ 50 milhões para ações de ATER focadas no Nordeste semiárido. Essas ações setoriais são importantes, mas ainda é cedo para afirmar se elas vão chegar de forma articulada ao público mais vulnerável e a grupos específicos, como os jovens rurais.


Não é demais mencionar que o apoio à juventude rural é uma medida estratégica para o futuro da agricultura familiar nordestina e talvez resida aí um dos seus principais desafios. Anualmente verifica-se o crescimento da saída dos jovens do campo e o envelhecimento do segmento. Basta dizer que, em 2017, dos 1,8 milhão de estabelecimentos familiares nordestinos pesquisados pelo IBGE tão somente 38.368 (2% do total) eram chefiados por jovens até 25 anos.


A diminuição do êxodo rural e a garantia da sucessão na agricultura familiar não é uma tarefa trivial. Até porque as opções ocupacionais dos jovens não se resumem mais ao cultivo de vegetais e a criação de animais como sempre fizeram seus pais.


Para muitos deles a melhor alternativa de geração de renda pode ser a pluriatividade, ou seja, a combinação do trabalho em atividades agrícolas e não-agrícolas. Aliás, com a melhoria do acesso aos meios de transporte, com destaque para as motocicletas que tiveram um crescimento extraordinário nas áreas rurais da região nas duas últimas décadas, muitos jovens já conseguem dividir o seu tempo com o trabalho na roça e alguma ocupação em outros setores da economia situados nos perímetros urbanos dos municípios onde vivem.


Além disso, mesmo reconhecendo o papel central dos instrumentos setoriais de política agrícola apresentados pelo governo, não se deve esquecer que para 75% dos agricultores familiares nordestinos seus pequenos sítios são lugares de produção e também de moradia.


Logo, de modo articulado com as questões estritamente produtivas, é necessário ampliar a oferta de bens públicos coletivos (abastecimento d’água, saúde, educação, moradia, saneamento, estradas, segurança, comunicação, lazer etc.) nas comunidades rurais, pois, como alertou sabiamente um agricultor entrevistado em uma de nossas pesquisas no sertão nordestino: “Se o sítio não tiver nada de bom, as pessoas vão embora”.


Torna-se claro, portanto, que as características particulares da fração majoritária da agricultura familiar brasileira situada na região Nordeste no limiar do século XXI exigem atenção especial.


A sustentabilidade do segmento em um contexto de mudanças climáticas globais depende de políticas públicas de Estado, tanto de apoio à produção como de garantia da cidadania. A boa notícia é que a conjuntura política atualmente vivenciada pelo país parece sinalizar mudanças nessa direção.


Resta monitorar a implementação das novas ações e avaliar nos próximos anos até que ponto elas vão ser capazes reduzir as “múltiplas carências de ativos” do segmento e melhorar suas condições de reprodução social nas comunidades, fortalecendo o seu potencial cultural, criativo e produtivo historicamente enraizado como um recurso social indispensável na luta contra a fome, a pobreza e as desigualdades regionais.


Joacir Rufino de Aquino é economista, professor da UERN, membro do Instituto Fome Zero e sócio do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento.


Crédito da foto da página inicial: Comunicação CUT/Nacional (via Brasil de Fato).

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