No Cepel estão as chaves para alocação e precificação da eletricidade no país, um serviço essencial, garantido por sólidos e longevos vínculos com o Estado. Substituir o centro por fornecedores privados é pôr em risco a independência e a segurança da operação integrada do setor elétrico brasileiro.
A partir do último quartel do século XX o Brasil enfrentou desafio silencioso, cujo sucesso elevou-nos à condição de líderes na engenharia de sistemas de potência frente às nações. E o responsável último por este sucesso foi o corpo de engenharia do Centro de Pesquisas da Eletrobras – Cepel.
A instituição do Cepel foi objeto de ato jurídico de direito privado, formalizada nos primeiros dias de 1974, com assinatura do Estatuto Social pela Eletrobras, Chesf (controlada), Furnas (controlada), Eletronorte (controlada) e CGT Eletrosul (controlada).
Inexistiu, portanto, qualquer instrumento legislativo que amparasse a existência do Cepel, o qual tem como objeto social a realização, o apoio e o incentivo de atividades de pesquisa, desenvolvimento tecnológico, inovação, certificação e treinamento do setor eletro-energético brasileiro.
Em 2017, cerca de dois anos decorridos do golpe parlamentar, houve mudança no Estatuto Social do Cepel, com desobrigação da Eletrobras em fundear as atividades do centro de pesquisas (ver carta dos trabalhadores em https://www.aeel.org.br/data/files/CNE_15_05_20.pdf).
Na lei que autorizou o poder executivo a privatizar a holding de energia encontra-se previsto que a Eletrobras será responsável pela “manutenção do pagamento das contribuições associativas ao Centro de Pesquisas de Energia Elétrica – Cepel, pelo prazo de quatro anos, contado da data da desestatização” (Art. 3º).
Ou seja, sem qualquer proteção legal e desafiado como negócio privado, o futuro do Cepel parece ser o mesmo reservado ao CPqD da extinta Telebras. Um papel coadjuvante, quase redundante, em ambiente competitivo com elevada participação de interesses tecnológicos estrangeiros.
O objetivo do presente trabalho é discutir estratégia para o futuro do Cepel como parte de Sistema de Inovação em Infraestrutura.
1.O que é e por que precisamos do Cepel
O Cepel é um centro de pesquisas localizado no Campus da UFRJ no Rio de Janeiro. De acordo com relatório de atividades de 2020 possui 720 profissionais concursados e empregados da Eletrobras.
Nos anos recentes, o Cepel tem se afirmado como ente tecnológico do planejamento e da execução da política energética brasileira, bem como de apoio à integridade da operação e planejamento de geração e transmissão de energia elétrica do sistema nacional integrado.
De maneira a preparar o Centro de Pesquisas para ampliar o apoio tecnológico ao setor, as atividades de P,D & I foram consolidadas em seis áreas de atuação com potencial mercadológico: Otimização Energética e Meio Ambiente; Redes Elétricas; Automação de Sistemas; Linhas de Transmissão e Equipamentos Elétricos; Materiais, Eficiência Energética e Geração Complementar; e Infraestrutura Laboratorial e de Pesquisa Experimental.
Tomadas como centros de negócio, cada uma das seis áreas deve desenvolver “plano de negócios”, projeções econômico-financeiras que transmitam confiança sobre a continuidade dos aportes da holding no longo prazo.
Passados 4 anos, é esperado pelos novos acionistas que as áreas de negócio apresentem resultados positivos em seus respectivos mercados. Caso contrário, áreas serão desativadas ou revistas. Caso o Cepel se demonstre inviável (nos padrões exigidos de retorno financeiro pelos acionistas da Eletrobras), será negociado pela holding ou, eventualmente, liquidado.
Ocorre que, entre os serviços oferecidos encontra-se o desenvolvimento tecnológico de softwares responsáveis pelo fluxo de potência e pela precificação dos ativos de energia elétrica (à vista e futuros).
Ou seja, dentro do Cepel encontram-se as chaves para alocação e precificação da eletricidade no país. Considera-se este como serviço essencial, depositado em organização única e com sólidos e longevos vínculos com o Estado brasileiro. Não se pode pensar em substituir o Cepel por outros “fornecedores privados”, sob pena de conspirar contra a independência e a segurança da operação integrada do setor elétrico brasileiro.
O corpo de engenharia do Cepel trabalha com simulações digitais de eventos previstos em sistemas elétricos. Trata-se de representar um dos mais amplos sistemas no mundo, com enormes distâncias entre geração e centros de cargas, tensões elevadíssimas e sujeito a condições geográficas e climáticas desafiadoras.
Desta maneira, constitui-se em organização única com competência para perícias técnicas em casos de falhas na operação dos subsistemas. Na medida em que é esperado que a Eletrobras venda porções de suas ações nas subsidiárias em bolsas de valores, estas empresas romperão os laços operacionais que, por longo período, evitaram organicamente falhas.
É, portanto, do interesse do setor (incluso Eletrobras) que se mantenham contratos de longo prazo com o Cepel com a finalidade de atuar em disputas entre as firmas do setor.
Adicionalmente, o Cepel possui 34 laboratórios equipados para a realização de pesquisa experimental e ensaios normatizados e especiais, alguns dos quais únicos no país. Com isso, atua como ente acreditado pelo INMETRO, participando ativamente do desenvolvimento da indústria de materiais elétricos no país. Decorre da experiência laboratorial o conhecimento acumulado em estruturas de torres de transmissão, diagnóstico de transformadores etc.
Acredita-se que a manutenção e o investimento em laboratórios situem-se entre os principais usos de caixa realizados no Cepel. Considerando-se que o Cepel colabora com o INMETRO em sua missão pública, acredita-se que esta relação deva ser regida por contratos de longo prazo com cláusulas de investimentos.
Nem todo o desenvolvimento tecnológico desenvolvido no Cepel, contudo, possui aplicação prática e imediata. Com isso, a formação de uma cultura organizacional que enxerga e pensa a realidade brasileira em setor de crucial importância não pode ser reduzida e formatada para atuação estrita mercadológica. Considera-se importante que se garanta a continuidade destas atividades, mediante previsão e garantia de recursos públicos para ciência e tecnologia.
2.Quanto vale o Cepel?
A separação do Cepel da Eletrobras retira do primeiro a maior e principal referência, tanto como provedora de recursos, quanto de propositora de desafios tecnológicos.
Está posto que, ao desvincular-se da Eletrobras, o conjunto de serviços a serem contratados junto a entes públicos (ONS, INMETRO, Aneel, Ministério das Minas e Energia etc.) devem ser calibrados de maneira a permitir ao Cepel não apenas custear as operações, quanto também realizar investimentos tecnológicos de interesse do país.
Com o propósito de valorar mercadologicamente os serviços e produtos do Cepel foi contratada consultoria com Laboratório de Gestão de Tecnologia e Inovação (LabGETI) da Unicamp. Espera-se com isso definir os preços a serem cobrados pelos muitos serviços a serem oferecidos pelo Cepel junto às demais empresas do setor elétrico brasileiro.
Está claro desde já que, na ausência de comprometimento do setor público com a viabilidade do centro de pesquisas, não se pode esperar que as empresas privadas aceitem os preços estipulados como justo valor. Ao contrário, o poder de barganha acumulado pelos conglomerados privados é esperado de colocar o Cepel em situação similar ao CPqD, que viu praticamente desaparecer, após a privatização, os elos construídos em décadas com o setor de telecomunicações.
Evidentemente, o valor do Cepel para a sociedade brasileira depende do ritmo de investimentos no setor elétrico. Quanto maior o investimento, quanto mais diversificadas as fontes de geração, maiores os riscos operacionais para o setor.
Com isso, torna-se importante para as próprias empresas incumbentes a existência de um ente técnico independente que possa evitar e, caso ocorram, diagnosticar falhas e atribuir responsabilidades.
Dado que não é suposto que este ente técnico apresente viabilidade mercadológica durante todo o tempo, justifica-se a cobrança de tributos, taxas ou contribuições direcionados das empresas privadas para a manutenção de “reserva de capacidade” no Estado brasileiro para fins de arbitragem de conflitos. Estes tributos, taxas ou contribuições devem ser estabelecidos em Lei.
3.Qual o papel do Cepel após a privatização da Eletrobras?
Juntamente com o Cenpes (Petrobras) e o CPqD, o Cepel formou, ao longo das décadas, um tripé na capacidade de desenvolvimento tecnológico associado ao crescimento e aumento de complexidade da infraestrutura no país.
Considerando-se que os três centros de pesquisa são ou foram ligados a holdings estatais setoriais e, considerando-se que o Estado brasileiro tem sido levado a se desfazer do controle acionário destas holdings, parece razoável supor a consolidação destes entes em um só.
Um único centro de pesquisa, sem fins lucrativos, em energia e telecomunicações com estratégia de longo prazo e independente dos ritmos de investimentos impostos pelos ciclos mercadológicos. Um único centro de pesquisas com lei própria de constituição, que garanta a viabilidade econômico-financeira e a integridade do corpo funcional, mesmo em momentos em que as empresas privadas não demandem serviços de engenharia.
Assim, em momentos de maior demanda por investimentos no setor, a holding tecnológica teria recursos mercadológicos disponíveis para ampliar o escopo ou a duração de projetos de interesse privado, sem prejuízo do interesse público.
A atuação dessa holding tecnológica deve ser coordenada com a atuação da Finep, banco público dedicado ao desenvolvimento de C,T&I. A interação entre as duas autarquias pode e deve ser formalmente estabelecida, com aporte de recursos da Finep para projetos de pesquisa com impactos no longo prazo.
Com a preservação do acervo tecnológico conquistado pelos brasileiros ao longo de décadas de aprendizado, a “desestatização” pode ter efeitos negativos reduzidos, principalmente em setores onde o Brasil conta com sistemas de grandes dimensões e, por isso, sujeitos a elevada incerteza.
Enquanto na indústria as firmas constituem setores competitivos, com certo grau de redundância de recursos, na infraestrutura, devido ao caráter de rede, as redundâncias são muito menores. Por esta razão, o topo da hierarquia industrial, ocupado por firmas de bens de capital e centros de pesquisa, devem ser cuidadosamente monitorados pelos governos quanto às condições de sobrevivência econômico-financeira. São usualmente firmas com porte relativamente pequeno, sujeitas a variações econômicas, porém sua preservação confere a qualidade técnica dos serviços a serem prestados pelas firmas incumbentes.
A solução de integração dos três centros (Cepel, Cenpes e CPqD) em uma holding de C,T&I parece assim uma estratégia de valorizar o patrimônio público ao mesmo tempo em que se aproximam os núcleos inovadores dos desafios enfrentados pelas empresas em concorrência sempre imperfeita.
Marco Aurélio Cabral Pinto é professor da Escola de Engenharia da Universidade Federal Fluminense, mestre em administração de empresas pelo COPPEAD/UFRJ, doutor em economia pelo IE/UFRJ. Engenheiro no BNDES e Conselheiro na central sindical CNTU.
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