As ensandecidas manifestações pela volta da ditadura militar trouxeram à tona a discussão sobre o golpismo no Brasil.
Claro está que o anticomunismo primitivo dessas manifestações, que ressuscitaram a Guerra Fria em pleno século 21, é algo definitivamente cômico, que não assusta muita gente.
De fato, no mundo de hoje, tais manifestações parecem tão deslocadas no tempo quanto uma típica quartelada latino-americana, algo saído de uma caricata república bananeira.
Mas o golpismo não se restringe mais às tradicionais e folclóricas quarteladas. Há formas mais avançadas e dissimuladas de se contrapor à vontade popular.
Nosso entorno regional, muito criativo a este respeito, já nos deu exemplos de como isso pode ser feito. No Paraguai, inventou-se o impeachment a jato, sem direito à defesa, assentado em denúncias falsas e em Congresso e Judiciário com pouco compromisso com a democracia.
Em Honduras, criou-se a deposição “legal” de presidente eleito, fundamentada em interpretação parcial e criativa de dispositivo constitucional, com direito ao exílio inconstitucional do supremo mandatário.
Na Venezuela, assiste-se à “La salida”, uma aposta violenta na ingovernabilidade, com direito a mortos e feridos. Trata-se, neste caso, de um golpe lento, uma tentativa de asfixiar o governo eleito e a democracia.
No Brasil, aqueles que temem o “bolivarianismo”, sem sequer saber do que se trata, parecem estar apostando, paradoxalmente, numa espécie “venezuelização” do Brasil.
Parecem querer implantar aqui “A Saída”, ou seja, a deposição, a qualquer custo, da presidenta recém-reeleita. Trata-se de uma aposta política extremamente perigosa e antidemocrática, que flerta abertamente com o autoritarismo do nosso passado obscuro.
Exemplos se sucedem.
Ainda em plena campanha, o ex-presidente FHC desqualificou o voto no PT, agredindo, dessa forma, a instituição do voto popular, base de qualquer democracia.
Mal terminaram as eleições, o PSDB requereu uma inédita recontagem dos votos, sem qualquer fato para lhe dar sustentação, emulando o acontecido na Venezuela e agredindo a justiça eleitoral brasileira e um sistema de votação elogiado no mundo inteiro.
Os pedidos, totalmente desprovidos de base jurídica, de impeachment da presidenta, revelam um falta de compromisso com a democracia que beira a insanidade política.
Até mesmo um conhecido ministro do STF somou-se ao bloco dos celerados, acenando com o ridículo fantasma político de uma Corte Suprema “bolivariana”.
A proposta correta e racional da presidenta de chamar o país polarizado durante a campanha para o diálogo e a conciliação caiu no pântano da bílis negra do discurso do ódio e da intolerância, que os setores mais radicais e irracionais da oposição não querem abandonar.
No Congresso, a resposta ao convite foi a rejeição à regulamentação da democracia participativa. Algo previsto na Constituição e revindicado pelas ruas brasileiras, em junho de 2013.
Assim, não é a volta de uma anacrônica quartelada que preocupa. O que preocupa realmente são essas iniciativas que demonstram pouco apreço pela democracia e, sobretudo, profundo desprezo pela vontade popular expressa no voto.
O que preocupa são esses matizes ambíguos e dissimulados de um golpismo “sofisticado”, que parece seduzir setores expressivos da oposição e da mídia conservadora.
Felizmente, há setores racionais da oposição que estão querendo se distanciar dessa loucura política.
Entretanto, não basta se distanciar do risível anticomunismo primitivo e extemporâneo expresso em manifestações recentes. Não basta rejeitar os patéticos pedidos de quarteladas bananeiras.
É necessário rejeitar o golpismo em todas as suas formas, em todos os seus tons. É preciso enterrar esses pedidos grotescos de recontagem injustificada de votos, que lançam suspeitas infundadas sobre um pleito liso e correto.
É necessário denunciar esses requerimentos de impeachment que se sustentam apenas no ressentimento dos derrotados.
É imprescindível, sobretudo, que todos reconheçam que a vontade popular, fonte de todo poder, já se expressou nas urnas, as quais conferiram novo mandato legítimo à presidenta Dilma Rousseff.
Todos têm de respeitar esse mandato, que só termina ao final de 2018. Isso é a pré-condição para a sobrevivência da democracia brasileira.
Feito isso, seria bom para o Brasil que os setores racionais da oposição aceitassem o diálogo proposto pela presidenta.
Afinal, o diálogo é parte intrínseca da democracia, algo especialmente benéfico quando a polarização política se exacerba. A alternativa ao diálogo que fortalece a democracia é o monólogo com o fígado, que só enfraquece as instituições democráticas.
A construção da democracia brasileira custou muito sacrifício. Custou a vida de muitos e o empenho de todas as forças democráticas, de distintas ideologias. Cabe a essas forças, na situação e na oposição, defendê-la.
Afinal, apostar numa estéril ingovernabilidade é submeter o Brasil e sua democracia aos distintos tons de um sádico golpismo.
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