top of page
fundo.png

Salvando o PIB ou vidas?

  • Foto do escritor: Brasil Debate
    Brasil Debate
  • 26 de mar. de 2020
  • 6 min de leitura

O debate econômico sobre as soluções para contornar a provável maior crise epidemiológica da nossa geração revela-se um fracasso. Por um lado, os liberais atônitos percebem os limites da economia de mercado e apelam para medidas fiscais destinadas a salvar as margens de lucro do empresariado. Por outro, os heterodoxos reforçam os apelos às tradicionais medidas de ampliação do gasto público, objetivando mitigar os impactos da crise epidemiológica sobre o PIB. Ao restringir o debate econômico às medidas monetárias, fiscais e salariais tradicionais, os economistas perderam a dimensão da excepcionalidade da coronacrise e aparentam estar mais preocupados em salvar o PIB do que as vidas.

O desespero da equipe econômica ultraliberal de Paulo Guedes foi se explicitando ao longo dos últimos dias. O derretimento do índice IBOVESPA, a disseminação do SARS-CoV-2 pelo mundo, o crescimento exponencial do número de infectados no Brasil e o agravamento da situação italiana colocaram em xeque a conjuntura econômica já precária na qual Guedes insistia em aprovar suas reformas pró-business.

Projetando os possíveis impactos econômicos da crise, subordinada a ações erráticas, irresponsáveis, inconsequentes e imaturas de Jair Bolsonaro, a equipe econômica de Guedes vem divulgando diversos pacotes de estímulos econômicos, cada vez mais incisivos sobre a atividade econômica. Dentre várias anunciadas até sexta (20/03), cabe mencionar a realocação do orçamento de outras áreas para a saúde, o estímulo ao crédito pessoal como a renegociação das dívidas, a redução dos encaixes obrigatórios dos bancos e o aumento do crédito consignado, as diversas renúncias fiscais ao empresariado (como a suspensão do pagamento do FGTS e redução de 50% das contribuições devidas ao Sistema S) e o risível auxílio emergencial aos trabalhadores informais no valor de R$ 200,00.

A resposta dos heterodoxos não poderia ser outra se não denunciar a subestimação da equipe econômica dos impactos da crise sobre o PIB e os mais pobres. Viram claramente que as medidas de realocação dos recursos orçamentários e de salvamento das margens de lucro do empresariado eram insuficientes para conter a provável queda do produto e o agravamento do caos social. Na última semana, um conjunto de medidas foi sugerido, entre as quais, a política responsável de renda mínima, intensificação do crédito pessoal, capitalização das empresas, renúncias fiscais e elevação do gasto público.

Cabe mencionar, em particular, a ênfase fiscal do protagonismo do Estado. A substituição da queda do consumo privado pela expansão do gasto público surge aqui como a solução para o não derretimento da economia. A ideia seria impedir o ciclo vicioso da contração da renda, da demanda e da produção durante a coronacrise. Para tanto, seria necessário romper os limites legais de elevação dos dispêndios estatais, tais como a PEC do teto de gastos e as leis federais, municipais e estaduais de responsabilidade fiscal. O gasto público limitar-se-ia exclusivamente às restrições inflacionárias e externas (divisas internacionais).

Em ambos os casos, parece que os economistas ainda não entenderam a dimensão da excepcionalidade desta crise econômico-epidemiológica, uma vez que se apresenta como uma profunda crise humanitária. Em um momento em que é imprescindível o isolamento social para que a maioria das vidas sejam preservadas e o sistema de saúde não colapse, é questionável pensar na organização da vida econômica durante este período exclusivamente em termos de políticas econômicas tradicionais (mais ou menos expansionistas) que seguram ou empurram o mercado.Objetivamos salvar o PIB ou as vidas? Se a resposta for esta última, precisamos pensar para além da política econômica.

Há pelo menos três motivos para desconfiarmos da eficácia das políticas econômicas tradicionais neste período. O primeiro podemos chamar de paradoxo do PIB. Políticas fiscais genéricas que estimulam o consumo e a produção aleatória frequentemente intensificam a aproximação física entre os indivíduos, arriscando ainda mais a disseminação do vírus entre a população. A aceleração da produção aleatória e da circulação tradicional da renda neste momento devem ser repensadas. Se o esforço é para acelerar a economia, mais pessoas serão expostas. Se o esforço é para preservar vidas, precisamos repensar a relação entre produção e renda dentro de outra perspectiva. Eis o paradoxo.

O segundo motivo refere-se à incapacidade dos sistemas contábeis e de preços de alocarem e distribuírem a renda e os recursos econômicos segundo os critérios próprios de mercado em períodos de irracionalidadesgeneralizadas.

A drástica redução do gasto privado, a instantânea reconfiguração das necessidades, a desarticulação dos diversos elos de compra e venda e a brusca queda da renda do capital e do trabalho embaralham a capacidade de resposta do setor privado. Ainda que políticas salariais vigorosas, expansão do crédito e elevação de gastos públicos em setores mais essenciais sejam fundamentais, vale questionar se serão suficientes para a rápida reconfiguração da economia em direção à manutenção da produção de bens essenciais, como alimentos, vestuários, produtos de higiene e limpeza e insumos e equipamentos hospitalares.

Cabe pensar, por fim, se, neste contexto, estaríamos numa espécie de armadilha do gasto público. Havendo um profundo desajuste do sistema de preços e das expectativas nesta precária economia mercantil e capitalista, será que a eficácia do gasto público aleatório seria suficiente para salvar o PIB? Dada a generalizada assimetria de informações num contexto de imobilização e indivisibilidade do capital, quanto tempo demoraria para o gasto público surtir efeito? Qual seria o tamanho deste esforço? Será que não perderíamos tanto o PIB quanto as vidas? O que viria depois da crise? Um imenso e antissocial ajuste fiscal e mais reformas liberalizantes?

Caso estes argumentos se sustentem, é hora de pensar em outras formas de intervenções. Se há tantas vidas em jogo qual uma guerra, o debate sobre a política econômica deve transformar-se no debate sobre a economia de guerra. Em períodos excepcionais, o setor público precisa de prerrogativas para organizar e coordenar a atividade econômica de forma centralizada.

A preservação de vidas hoje depende da capacidade do Estado de adequar de forma direta a estrutura produtiva às necessidades essenciais e imediatas de seu povo. Em outras palavras, as ações do setor público precisam superar a forma habitual de intermediação mercantil e monetária para a realização de suas políticas mediante acordos, decretos, intervenções e nacionalizações temporárias. Exemplos históricos de países como a Inglaterra, a Alemanha, a Rússia e os Estados Unidos apontam a eficiência da rápida realocação dos recursos produtivos no curtíssimo prazo durante as grandes guerras do século 20.

Há três problemas a serem equacionados. O primeiro refere-se à queda da renda agregada pela desarticulação econômica decorrente da coronacrise. O segundo está associado à possibilidade de redução da produção de bens essenciais por conta do isolamento social. O terceiro refere-se à incapacidade de o sistema produtivo ofertar insumos e equipamentos necessários ao acolhimento da população enferma pelo sistema de saúde.

A garantia de renda para todos os brasileiros faz-se imprescindível. Para não sobrecarregar o Estado e enriquecer ainda mais o sistema bancário, será necessário romper temporariamente com os mecanismos tradicionais de atrelamento da emissão da base monetária à expansão dívida pública. É possível depositar mais de um salário mínimo na conta bancária de cada trabalhador brasileiro durante quatro ou cinco meses. Por conseguinte, as decisões sobre o uso dos recursos bancários ficarão sob o controle do setor público, evitando fuga de capitais ou investimentos especulativos. A bolsa de valores ficará fechada até o fim pandemia.

O setor produtivo deverá, por decretos ou por nacionalizações, intensificar a produção de bens essenciais e imediatos à população. Deve-se respaldar em leis extraordinárias como as que vigoraram nos Estados Unidos durante a Guerra Fria: Lei de Produção de Defesa. O governo poderá realocar trabalhadores e meios de produção para a produção de bens de consumo não duráveis como alimentos, vestuário e produtos de higiene, de limpeza e farmacêuticos. Será necessário realizar sistemas de logística e distribuição destes bens por servidores públicos e voluntários treinados e assistidos pelos profissionais de saúde.

A produção de bens, insumos, prédios, instalações e equipamentos hospitalares deverá ser prioritária. Todos os setores produtivos subutilizados reestruturarão suas plantas para atender às urgentes necessidades deste setor. O governo precisará controlar a taxa de câmbio e o nível de importações, utilizando parcela do saldo comercial e das reservas para importar insumos e equipamentos imprescindíveis à produção dos bens supracitados.

A importação massificada de kits para teste de confirmação do contágio será imprescindível. Será necessário retomar o quanto antes o Revalida, importar médicos cubanos e acelerar a formação médios e enfermeiros que estão para se formar em 2020.

Se o objetivo é salvar vidas, precisamos ir além da política econômica. Ainda que o debate sobre a política econômica tenha boas intenções, precisamos mudar a referência de análise. O tamanho do PIB deixou, por hora, de ser o parâmetro de sucesso ou fracasso. Precisamos falar de economia de guerra. A rápida realocação dos recursos produtivos no curtíssimo prazo sob a coordenação direta do setor público será necessária nesta guerra humanitária. Quem são os nossos inimigos?

Comentários

Não foi possível carregar comentários
Parece que houve um problema técnico. Tente reconectar ou atualizar a página.

© Brasil Debate - Desde de 2014

bottom of page