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Os novos deserdados da Terra

  • Foto do escritor: André Luiz Passos Santos
    André Luiz Passos Santos
  • 15 de mai.
  • 6 min de leitura


O filme Nomadland, de 2020, é o retrato de como o desamparo de muitos gerado pelo capitalismo é altamente funcional para esse mesmo sistema. Aposentados sem direito a seguridade social formam mão de obra barata explorada por bigtechs. Um velho mundo em escombros, sem que um novo desponte no horizonte

Somente agora pude assistir ao filme Nomadland – sobreviver na América, de Chloé Zhao, que estreou no festival de Veneza de 2020 e terminou por receber três estatuetas Oscar, dentre seis indicações, entre outras importantes premiações. Nem é preciso falar da magnífica atuação de Frances McDormand, premiada na categoria de melhor atriz, ou do roteiro, direção e edição impecáveis. O filme é, a um só tempo, duro e comovente.


Nomadland utiliza, ao lado de poucos atores profissionais, pessoas que vivem o drama de perderem as economias de uma vida e suas casas na crise do subprime de 2008, e passaram a viver em vans adaptadas, como nômades, em busca de lugares onde pudessem acampar e ter acesso a água, esgoto e eletricidade a um custo que sejam capazes de suportar. Isto é o que torna a história tão especial. As personagens são nômades reais, compartilhando seus dramas, sonhos e frustrações, repartindo o pouco que têm, estimulando e ensinando uns aos outros técnicas de sobrevivência numa terra que os deserdou.


Não se trata de pessoas sem-teto que perambulam pelas ruas, mendigando. São trabalhadores que foram privados do que juntaram quando o sistema financeiro dos Estados Unidos flertou com a ruína, ou que passaram toda a vida indo de um emprego precário para outro, sem conseguirem poupar para a velhice. Já idosos, muitas vezes solitários, veem-se na contingência de submeter-se a trabalhos fisicamente exigentes, com jornadas exaustivas, sob condições climáticas desfavoráveis, em contratos de trabalho temporário.


O sistema de previdência social estadunidense é desenhado para apenas conceder às pessoas uma pensão reduzida, que não é capaz de lhes prover as necessidades mais básicas, o que obriga aos que não possuem patrimônio – ou o perderam nos azares dos investimentos – a trabalharem até o fim de suas vidas.


Ao assisti-lo, não pude deixar de comparar com o filme de John Ford de 1940, baseado no livro de mesmo nome de John Steinbeck, As Vinhas da Ira, estrelado por Henry Fonda. Ford e Steinbeck retratam famílias inteiras vivendo na carroceria de velhos caminhões, como espectros, perambulando de colheita em colheita na Califórnia dos anos 1930, depois de perderem suas fazendas, casas e poupanças na Grande Depressão de 1929. Nomadland mostra situação semelhante, com a diferença de que expõe a realidade de pessoas idosas que perderam suas posses, afetos e cotidianos, vivem em trailers ou vans que eles próprios customizam, indo de um lugar para outro em busca de oportunidades de trabalho e pouso a baixo custo. São, tal como as famílias narradas por Steinbeck, os boias-frias de hoje.

 

Nomadland se baseia numa extensa numa extensa e tocante reportagem da jornalista Jessica Bruder, publicada na edição de agosto de 2014 da Revista Harper’s, sob o título The End of Retirement – When You Can’t Afford to Stop Working, ou “O Fim da aposentadoria – quando você não pode parar de trabalhar”, em tradução livre. A matéria está disponível no site da revista, apenas em inglês.

 

Enquanto o filme, como não poderia deixar de ser, busca comunicar com imagens e emoções, para além das palavras, o texto é mais denso, detalhado e preciso. Mostra a realidade de pessoas com sessenta anos ou mais, sem posses, que não conseguem emprego através das agências públicas, a quem resta recorrer ao pequeno benefício assistencial, que não é suficiente sequer, em alguns casos, para pagar o aluguel dos locais de acampamento onde estacionam suas vans e as conectam aos serviços básicos de água, eletricidade e coleta de esgoto.

 

Elas terminaram por formar comunidades nômades, por inspiração de Bob

Wells, um idoso que perdeu sua família e bens, passando a viver em uma van. Wells dedicou-se a postar vídeos na internet ensinando como viver como nômade, dicas de locais para acampamentos selvagens e refeições baratas, customização de vans, como consertar um pneu furado etc. Por inspiração de Wells, Quatzsite, pequena cidade de menos de cinco mil habitantes no Arizona, tornou-se uma espécie de meca para onde se dirigiam milhares de sem-casa para um encontro anual. Ali, em torno de fogueiras, trocavam experiências e compartilhavam suas histórias. Eram trabalhadores de diversas origens e profissões: professores substitutos, atendentes de lojas, radialistas, operários da construção civil, administradores.

 

Sua realidade compartilhada era a de ir de estado em estado no Oeste do país em busca de oportunidades de emprego temporário e infraestrutura barata. Trabalhavam como colhedores de beterraba, balconistas, recepcionistas em parques, faxineiros, operários de construção. Anualmente, em outubro, muitas dessas pessoas acorriam a um imenso galpão de uma famosa bigtech, atraídos pela demanda de entregas de fim de ano. Ali permaneciam até 30 de dezembro, submetidas a jornadas de trabalho de até 12 horas, em condições difíceis. Com o que ganhavam, conseguiam sobreviver por algum tempo e financiar a migração para outros estados, sempre em busca de trabalho, qualquer trabalho.

 

Os locais de conhecida aglomeração de campistas eram frequentemente visitados por recrutadores de várias empresas que procuravam por trabalhadores que custavam pouco, dedicavam o melhor de si ao trabalho e, de quebra, traziam suas próprias casas. A reportagem relata o caso de um desses recrutadores, envergonhado, admitindo que em seus 30 e poucos anos não conseguiria executar aquelas tarefas nas condições oferecidas.

 

A conclusão é que a crise do sistema financeiro global não desatou uma

disfuncionalidade. Pelo contrário, ela é altamente funcional. A reportagem relata que, em 2014, cerca de 7,7 milhões de estadunidenses de 65 anos ou mais estavam trabalhando, número 60% maior do que uma década antes. A crise e o desamparo de uma parcela significativa de idosos criou uma oferta de trabalho barata, itinerante e pouco exigente quanto à remuneração e condições de trabalho.

 

A bigtech mencionada, muito satisfeita com os resultados de seu imenso centro logístico no Kansas, onde empregava essa mão de obra precarizada, resolveu abrir outros desses gigantescos galpões em mais três localidades, estimando-se que tenha chegado a empregar dois mil “retirantes geriátricos”, como a matéria ironicamente os chama. Eles se submetem a um trabalho fisicamente árduo em longas jornadas, não permanecem tempo suficiente para organizarem-se em sindicatos, não necessitam de abrigo e aceitam remunerações que trabalhadores regulares recusariam. E ainda são gratos pela oportunidade.

 

Quando da Crise de 1929, o desemprego em massa que se seguiu foi frontalmente combatido pelo Estado nos anos seguintes, com o governo Roosevelt expandindo os gastos públicos em obras urbanas, estradas, ferrovias, para empregar os trabalhadores desamparados, numa época que sequer havia Seguridade Social nos EUA. Aliás, o parco sistema de proteção social que hoje existe naquele país foi criado exatamente como uma resposta à crise e à tragédia social que foi gerada.

 

Após a crise financeira de 2008, pelo contrário, o Estado está impedido de socorrer seus cidadãos desvalidos. A ordem é impedir o Estado de gastar, de cumprir suas funções sociais, a tal responsabilidade fiscal exigida dos governantes pelos credores da dívida pública. Os cidadãos abandonados, desacreditados do propalado sonho americano, vão assistindo, desorientados, geração após geração vivendo pior do que as que a antecederam. E vai crescendo a melancolia, desalento e, sobretudo, um desespero silencioso que deságua em profundo ressentimento.

 

Essa raiva surda precisa encontrar culpados, e as forças políticas oportunistas, à extrema direita, sempre à espreita para espalhar mentiras e lançar o ódio como armas, está pronta para apontar aos ressentidos quem seriam os inimigos. Ontem, os judeus, ciganos, comunistas. Hoje os imigrantes, pessoas trans, trabalhadores tão precarizados quanto eles. Os deserdados desconhecem seus verdadeiros inimigos, e acabam sendo confundidos por eles. O resultado estamos vendo, espalhando-se como uma sombra trágica pelo planeta.

 

O velho mundo está ruindo, não tem mais o que oferecer aos novos deserdados da Terra, mas o novo mundo ainda não emergiu de seus escombros. Antônio Gramsci já nos alertava: nesse impasse, surgem os monstros. Eles têm o discurso das soluções fáceis para problemas complexos, típico dos salvadores da pátria. Invariavelmente são caricatos, autoritários, grandiloquentes, e as soluções mirabolantes que prometem jamais chegam sequer a arranhar os reais problemas; na verdade dobram a aposta na destruição. Os ressentidos, sentindo-se traídos, não têm por que defender um sistema que lhes virou as costas. Qualquer alucinado que proponha destruir tudo lhes parece melhor do que a situação em que vivem.

 

Oxalá não tardemos demais a perceber que são eles, não aqueles ainda mais fragilizados do que nós, os nossos verdadeiros inimigos.


André Luiz Passos Santos é economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.


Crédito da imagem da página inicial: Divulgação (cena do filme Nomadland)

1 comentario


Marcos Davi Pontes
Marcos Davi Pontes
16 may

Que texto maravilhoso, real e comovente. Triste ver que os idosos viraram mão de obra barata, através de uma sociedade cruel no qual nos tornamos. Que textos e pensadores como o André sejam mais divulgados para alertar o que anda ocorrendo com a nossa sociedade que está se tornando desumana.

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