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O dilema entre capacidade e necessidade no trabalho

De cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo a sua necessidade. A frase de Karl Marx, que se tornou emblemática desde seu anúncio, sintetiza as dimensões produtiva e distributiva do exercício do trabalho humano.

Quem trabalha ou dispende sua força de trabalho o faz de acordo com sua capacidade laborativa, seja em sala de aula, colhendo cana-de-açúcar, operando numa mesa de cirurgia, tocando numa orquestra sinfônica ou observando pássaros para catalogação científica.

Haverá sempre nuances entre os respectivos trabalhadores em suas áreas de trabalho que os diferenciam em agilidade, eficiência, destreza, disposição, enfim, uma gama de características individuais que predispõem uns em relação a outros em seus desempenhos mais ajustados ou não em determinadas tarefas.

Deve cada trabalhador se prover pelo seu dia ou horas de trabalho das necessidades que lhe são úteis e básicas, entre outras, alimentar-se, vestir-se, morar, locomover-se, divertir-se.

Segundo tradições, costumes e hábitos envolvidos na cultura das comunidades de onde procedem, cada trabalhador precisará de algumas coisas ou outras e sentirá falta de outras mais para seu sustento e, caso for, de sua família.

Essa questão aparentemente simples – a relação entre capacidade e necessidade no trabalho – é a maior dor de cabeça para os trabalhadores no mundo capitalista. Da dor sabia Marx, do tratamento tinha o remédio, da cura, no entanto, séculos e séculos dele nos separam e a solução ninguém dispõe de pronto.

No capitalismo contemporâneo, então, a dor de cabeça é sem tamanho. Varia de intensidade de região a região, de forma de produção a outra, de ocupação a outra, entre ramos de atividade, em regimes de mercado ou não. Nessas situações, uma mão realmente não lava a outra.

Ou a capacidade se diferencia demais da necessidade, ou ambas são artificialmente manipuladas, desatrelando-se cada vez mais uma da outra. Entra em ação o capital nessas ocasiões, e sempre entra, e não quer sair mais, tirando proveito das diferenciações que estabelece e lhe são benéficas.

Pois é exatamente essa diferenciação provocada pela ação do capital, ou melhor dizendo, de seus representantes, os capitalistas, sejam eles empresários, banqueiros, rentistas, ou agro-negociantes, que redunda na separação constante e progressiva entre a produção e a distribuição.

Quem produz o que produz não mais recebe exatamente o equivalente ao que produz. O que é produzido pelo trabalhador acaba lhe voltando em quantidade ou valor menor. Quase sempre em valor menor, na medida em que as transações se medem por dinheiro em escala de valores.

Então, da diferenciação de valores entre produção e distribuição nasce a distinção de rendimentos entre trabalhadores e entre eles e os capitalistas. A essa distinção no mundo moderno se dá o nome de distribuição de renda.

Assim, a repartição dos valores produzidos chega aos seus executores, trabalhadores e capitalistas, ou empregados e patrões, de forma diferenciada, escalonada.

O trabalhador que hoje chega ao mercado vai se deparar com duas situações distintas. Uma, o quanto lhe é oferecido de salário numa escala de rendimentos feita pela empresa (organização); outra, a ocupação que vai ter na empresa de acordo com a estrutura ocupacional elaborada por ela.

Cada empresa tem sua especificidade no mercado, ou sua cultura empresarial, o que a faz determinar as características que quer em termos de escala de salários e estrutura de ocupações.

Mas ela não pode e não deve se diferenciar muito das demais empresas de seu ramo, de sorte a evitar competições indesejáveis e eventuais perdas de posições no mercado, além de falta de trabalhadores. Assim, salários e ocupações giram em torno de determinados padrões de equivalência.

O curioso é que as escalas de salários e as estruturas ocupacionais, ambas elaboradas pelas empresas e referenciadas pelo mercado, determinam os valores e as posições que os trabalhadores vão ser empregados. O curioso vira trágico. Os trabalhadores estão duplamente nas mãos das empresas. De novo uma mão não lava a outra.

O trabalhador, ao ir ao mercado em busca de trabalho, corre, então, duplo risco: ter a oferta de um salário mais baixo do que recebia antes ou do que outros recebem hoje, ou ser-lhe oferecida ocupação mal posicionada na estrutura ocupacional da empresa em relação ao que tinha antes ou ao que outros estão ocupando agora. O inverso desse padrão é raro, mas ainda possível, dependendo das profissões e das situações de mercado no momento.

A desigualdade de renda mensurada no mercado, portanto, pode ser afetada por esses dois fatores ao mesmo tempo. Ou ela tem o peso maior de uma escala de salários regressiva, níveis salariais mais diferenciados para o topo e menos para a base, ou ela tem o peso de uma estrutura ocupacional piramidal, muitas vagas na base e poucas vagas no topo.

Essa metodologia foi aplicada em estudo recente sobre o Brasil, Desigualdade e Séries de Rendas e Frequências, atualmente em avaliação para publicação em periódico. Os resultados indicam que ambos os fatores afetam bem o perfil da desigualdade no País, embora a estrutura ocupacional pese mais na medida final.

Muito embora a desigualdade esteja diminuindo desde o início da década passada, o que se encontra é que os trabalhadores enfrentam uma estrutura ocupacional fortemente piramidal, com poucas chances de mobilidade ascendente. Entram no mercado por baixo e tendem a ficar por aí mais tempo.

Mesmo que os salários sejam acrescidos de tempos em tempos, os aumentos são menores que os dados aos que estão acima. Logo, a maioria dos que entraram por baixo tende ou a permanecer por baixo ou, no máximo, a subir um pouco na escala salarial e/ou na estrutura ocupacional – mas sem sair do grupo do meio e do grupo da metade inferior do total dos trabalhadores no mercado.

Nessas condições, a melhoria da distribuição de renda no Brasil passa por uma reformulação democrática das escalas salariais e estruturas ocupacionais das empresas.

Pois são essas, ao fim e ao cabo, que determinam o perfil da desigualdade no capitalismo moderno. A bola está nas mãos dos profissionais de recursos humanos, dos sindicatos e dos representantes das empresas. Quem sabe uma mão não comece a lavar a outra???

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