A economia solidária se encontra entre a ferocidade do capital (individualista) e a inconsciência e alienação dos trabalhadores. Uns a chamam de manicure de dragão, pervertendo-a, como inócua, impotente. Outros, de coisa de padre comunista. O empreendimento de ES é, antes de tudo, produtivo e gerador de renda, não assistencialista
O objetivo principal do texto é questionar por que a prática da economia solidária no Brasil é tão desconhecida, e, quando conhecida, tão desconsiderada. Uma citação (entreouvida indiretamente) de um reitor de universidade pública mostra, com ênfase, uma afirmação contundente: “Não existe economia solidária; toda economia é competitiva”.
O saudoso Prof. Paul Singer, inequívoco inspirador e incentivador do movimento de economia solidária no Brasil, em várias de suas manifestações públicas, acadêmicas ou não, define-a como um modo de produção diferente e alternativo ao capitalismo e também como um projeto político de parte da sociedade brasileira [Singer (1987, 1999, 2002)], não sem muitas críticas, como podemos ver em Germer (2011), e Dagnino & Novaes (2005).
A solidariedade na produção tem origem remota na história das sociedades, e é hoje a denominação de movimentos sociais e políticos disseminados no Brasil e na América Latina, e mesmo em outros continentes, com diversas outras denominações e dinâmicas de funcionamento: Economia Solidária, Economia Social, Economia da Solidariedade, Empreendimientos Asociativos Mercantiles (EAM-Argentina), Sociedades Laborales (Espanha) etc.
A caracterização da economia solidária como um novo modo de produção nos traz a questão fundamental - sua rivalidade com o modo de produção capitalista. Como se vê em Marx, os diferentes modos de produção podem até conviver (sempre em tensão crítica), mas não se conciliam. Outro ponto importante é a cronologia dos acontecimentos, ou o materialismo histórico. Apesar de haver, inclusive, vários modos de produção convivendo atualmente no Brasil, o capitalista é dominante.
Em nota técnica, Pochmann (2004), citando Sachs (2002), aponta: “Para alguns, o Brasil possui quatro modos de produção distintos: economia doméstica (ocupados não-remunerados no trabalho de subsistência e de construção para o próprio uso); economia protocapitalista e pré-capitalista (produção doméstica de bens para a população de baixa renda e de serviços para o mercado); economia capitalista tradicional; e economia solidária (não regida pelos princípios capitalistas)”.
No caso brasileiro, como reação ao desemprego e recessão que se iniciam no final dos anos 1980, principalmente em suas cercanias, a Fundação Oswaldo Cruz - a Fiocruz-, ligada à Faculdade Nacional de Saúde Pública, localizada em área densamente formada por favelas no Rio de Janeiro, desenvolveu uma cooperativa de trabalho que inspirou em 1995 os técnicos e professores da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mais especificamente da COPPE (Coordenadoria dos Programas de Pós-graduação em Engenharia), a criarem a primeira incubadora universitária tecnológica de cooperativas populares, a ITCP-COPPE-UFRJ, com apoio financeiro da Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), e da Fundação Banco do Brasil [[i] PÁTEO (2008)].
A economia solidária se encontra hoje entre a ferocidade do capital (individualista) e a inconsciência e alienação dos trabalhadores. Uns a chamam de manicure de dragão, pervertendo-a; chamando-a de inócua, impotente - como ostra entre o mar revolto e as pedras duras. Solidariedade? Já ouvi, por movimentos dos próprios trabalhadores, chamarem o Prof. Singer, de igrejeiro; coisa de Padre comunista, dos teólogos da libertação. Lembrar das Comunidades Eclesiais de Base - CEB’s, verdadeiro laboratório inicial da economia solidária no Brasil.
O capitalismo não se constitui mais, como na época de Marx, numa totalidade; está constituído por um sem número de subsistemas diferenciados, espacializados, globalizados. Os estados-nações, o sistema financeiro e o mercado globalizado levaram ao desaparecimento das contradições? Transformaram-se as relações de produção? Dificilmente poderemos confirmar estas proposições. O Iluminismo (Aufklãrung, esclarecimento) nunca mais foi o mesmo após o holocausto. A crença no poder regenerador da razão tornou-se inviável ao longo do século XX, e nas suas últimas décadas o pós-modernismo se empenhou em enterrá-la. As ideias não seriam claras e diferenciadas. A história não estaria fadada a promover o progresso e a felicidade dos homens.
Definida pela Secretaria Nacional de Economia Solidária – SENAES (instituída em 2003 no Ministério do Trabalho e Emprego, desestruturada em 2016, e em reconstituição em 2023), como um “conjunto de atividades econômicas de produção, distribuição, consumo e crédito organizadas e realizadas solidariamente por trabalhadores e trabalhadoras sob a forma coletiva e autogestionária” (SENAES, 2006, p. 11), a economia solidária tem se apresentado como uma alternativa viável de ascensão social e econômica. Nesse contexto, os movimentos sociais, a igreja, os estados e prefeituras, e ONGs tiveram um papel fundamental, uma vez que passaram a incentivar a disseminação dessas alternativas. Além disso, as universidades apresentaram-se como órgão fundamental de apoio aos empreendimentos da economia solidária que antes figuravam isoladamente, e hoje já se organizam em redes, fóruns e conferências (municipais, estaduais e federal).
Economia solidária é essa outra “forma de produção”? É um “novo” modo de produção? E se concatenado com uma adequada superestrutura jurídica, institucional e política do país, poderia se estabelecer como uma Formação Social futura?
É possível hoje as entidades da economia solidária conviverem com o capitalismo? As Saboeiras do Jd. Ângela em São Paulo, organizadas como cooperativa popular, têm que vender sabão no supermercado, empresa privada, ente capitalista? Dá prá vender? Competem ou não competem?
Sou um pesquisador na área de custos e preços e da lógica econômica no mundo competitivo atual; também das formas de comercialização. Aqui um grande dilema. O capitalismo tem esse processo de produção, que não é uniforme. Abre para outros tipos de organização, para outras formas de comercialização. Estas formas estão à margem do sistema econômico capitalista? Interessa ao grande sistema também explorar novas formas de associação produtiva, como é o caso das cooperativas populares de produção? Podemos entender que são formas alternativas de resistência ao capitalismo dominante? Como conviver?
Uma organização da economia solidária (EEs) é, antes de tudo, produtiva. Produção é a maneira com que o homem trata suas necessidades em relação à natureza e sociedade. Produção é um processo de apropriação da natureza, e quem realiza a produção é o trabalho. Questões importantes de produção nos empreendimentos de economia solidária são: Como, por que e para quem se produz? Para quem se vende? De quem se compra? E o excedente? Quem fica com o excedente? Essa é a palavra a usar, excedente, sobra ou mais valia?
Economia solidária é um modo de produção novo? Será uma futura formação social? Para Zizek:“(...) hoje, como assinalou Fredric Jameson com muita perspicácia, ninguém mais considera seriamente as possíveis alternativas ao capitalismo, enquanto a imaginação popular é assombrada pelas visões do futuro “colapso da natureza”, da eliminação de toda a vida sobre a Terra. Parece mais fácil imaginar o “fim do mundo” que uma mudança mais modesta no modo de produção, como se o capitalismo liberal fosse o “real” que de alguma maneira sobreviverá, mesmo na eventualidade de uma catástrofe ecológica global” (Zizek; p. 7).
Duas concepções que se pretendem libertárias, à sua maneira: do indivíduo, e da sociedade. Nunca deu certo uma conciliação. Mas lutam sempre. No meio, o Estado, pragmático e tendencioso. Mas por que um dos lados é tão mais poderoso? E o outro tão difícil de se organizar?
A autogestão é uma forma de organização da produção na qual o trabalhador assume o papel central e é administrado pelos seus participantes em regime de democracia direta (um socialismo democrático, na concepção do Prof. Singer – por isto, também, tão vilipendiado).
Não há a figura de patrão nem de gerentes, pois todos os trabalhadores participam das decisões administrativas e operacionais em igualdade de condições. Os conceitos de autogestão variam de acordo com a posição política ou social de determinado grupo, mas não pode ser confundida com o controle operário que mantém a hierarquia e o controle externo da cooperativa por algum organismo ou instância superior como, por exemplo, um partido político ou sindicato – por isto, também, não instrumentalizável política e economicamente. Quem sabe, por isto, pouco interessante para o Poder.
Um empreendimento de economia solidária é, antes de tudo, produtivo e gerador de renda, não assistencialista. Produção é a maneira com que o homem trata suas necessidades em relação à natureza e sociedade. Produção é um processo de apropriação da natureza; e quem realiza a produção é o trabalho. Como o trabalho é remunerado em entidades (produtivas) de economia solidária, que participam da atual economia conexionista (redes em diversas formas), e globalizada de mercado? A remuneração do trabalho não pode hoje ser considerada justa se avaliada com referência ao tempo de trabalho realizado. Deve-se considerar a construção de novos dispositivos que possibilitem desreificar, enquadrar e delimitar os efeitos de exclusão e expropriação existentes.
As alternativas solidárias de organização produtiva, cujo principal propósito é gerar trabalho e renda - já que emprego é conceito que se remete ao vínculo patronal -, têm os seguintes princípios básicos: trabalho cooperativo, autogestão, democracia interna, distribuição consensual dos excedentes econômicos (procedimento antagônico à distribuição de lucro da empresa capitalista), e sustentabilidade em suas três amplas conotações: social, econômica e ambiental.
São diversas as formas atuais de organização da economia solidária: associações de produtores, cooperativas de produção, empresas autogestionadas, grupos de produção, clubes de trocas, redes de compras e de vendas, centrais de cooperativas e bancos comunitários, entre as principais.
A economia solidária postula os seguintes princípios norteadores de sua prática:
Político – Este atributo caracterizaria as questões de democracia envolvidas no tema, da dicotomia igualdade/desigualdade existente no capitalismo atual, generalizado e mundial, e do princípio axiomático da posse coletiva dos meios de produção; e, por último, da prática social que vem a ser o critério de verdade sustentado pelo materialismo histórico.
Autogestão – Atributo que envolve a mudança das relações sociais e, por conseguinte, da mudança do modo de produção em direção à gestão coletiva, que modifica as práticas correntes utilizadas na administração de empresas produtivas (hierarquia e divisão do trabalho).
Produtivo – A economia solidária é hoje um movimento social constituído de forma a organizar a produção (de bens e serviços) coletivamente, procurando alternativas à desigualdade e ao desemprego.
O homem precisa suprir suas necessidades para viver. Precisa de valores de uso. A ação econômica do homem vem destas necessidades. E tudo do que precisamos vem da natureza. Por isto na natureza coletamos as “coisas” que estão “livres”.Daí começa a análise: Valores de uso trabalhados a partir dos materiais da natureza.
Resgatando o objetivo do texto, e com o intuito de divulgação, comunicação e persuasão – se for o caso -, façamos uma mais extensa lista de possibilidades, já existentes, de formas de organização cooperativa. O Prof. Antônio Cruz (2006; p. 83) faz uma extensa classificação dos tipos de organizações de economia solidária, e aqui vale a pena reproduzi-la:
“1. Associação de produtores autônomos entre si. Reunião constituída legalmente ou não, de produtores autônomos entre si. Os associados são donos de meios próprios de produção e se reúnem com o fim de comercializar conjuntamente o produto e/ou potencializar outras ações econômicas.
2. Associação para produção ou trabalho. Reunião constituída legalmente ou não, de produtores ou trabalhadores que compartilham entre si a propriedade dos meios de produção e do patrimônio do empreendimento. Em geral, são grupos que estão em vias de se tornar cooperativas ou que preferiram não adotar essa forma legal, embora funcionem de forma similar.
3. Associação de crédito. Fundo mútuo destinado ao financiamento de insumos, de bens de produção, de capital de giro ou mesmo de consumo particular dos associados. Ao contrário das cooperativas de créditos, não tem legislação específica, regulando-se – a princípio – pelo direito civil, como associação privada.
4. Associação para consumo e habitação. Reunião constituída legalmente ou não, que objetiva reduzir custos de aquisição de bens ou serviços de qualquer natureza. É o caso das
“associações de compras coletivas” ou de condomínios de pré-proprietários para a construção associada de casas próprias.
5. Cooperativas de produtores autônomos entre si. Reúnem produtores autônomos entre si, mas filiados à organização cooperativa, na condição de proprietários privados de seus meios de produção, compartilhando o patrimônio e os ganhos da cooperativa.
6. Cooperativas de produção ou trabalho. Reúnem produtores ou trabalhadores associados que compartilham a propriedade dos meios de produção e do patrimônio da cooperativa ao
mesmo tempo.
7. Cooperativa de prestação de serviços de agentes autônomos. Formadas por profissionais de mesma capacitação (p.ex.: médicos, ou dentistas etc.) que prestam serviços de forma autônoma entre si, mas cuja cooperativa permite organizar a relação com o mercado através de convênios, consórcios e outras formas de articulação econômica.
8. Cooperativas de crédito. Fundos mútuos destinados ao financiamento de insumos, de bens de produção, de capital de giro ou mesmo de consumo particular dos associados. São regidas por legislação específica.
9. Cooperativas de consumo e de habitação (convencionais). Reunião de consumidores que objetiva reduzir custos de aquisição de bens ou serviços de qualquer natureza. Na classificação, optamos por incluir aí as cooperativas habitacionais que contratam terceiros para a construção de casas ou edifícios (embora sejam regidas por legislações específicas, o objetivo e o caráter têm a mesma delimitação).
10. Cooperativas de habitação por mutirão ou ajuda mutual. Em que um conjunto de associados se reúne para dividir os custos de produção e o trabalho necessário à construção de suas próprias moradias.
11. Organizações não-governamentais, sem fins lucrativos e com objetivo específico, que eventualmente assumem papéis econômicos para a viabilização de iniciativas associativas.
12. Empresas autogestionadas por trabalhadores ou empresas em regime falimentar, cuja massa falida é arrendada por uma associação ou cooperativas de funcionários junto ao síndico legal, e cujos rendimentos são em parte destinados a saldar o passivo da antiga proprietária.”
Acrescento os “bancos comunitários”, alternativa ao sistema financeiro tradicional.
A economia solidária já é um modo de produção no sentido amplo, portanto, “germe” de uma formação social futura. Mas será uma formação social futura?
Para o futuro propomos reflexão sobre: socialismo democrático, socialismo de mercado! E bancos comunitários.
Saudações solidárias...
Referências bibliográficas e nota
Singer, P. I. Introdução à Economia Solidária. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo. 2002
Singer, P. I. O capitalismo: sua evolução, sua lógica e sua dinâmica. Sâo Paulo: Moderna. 1987
Singer, P. I. Uma Utopia Militante: repensando o socialismo. 2. Ed. Petrópolis/RJ: Vozes. 1999.
Germer, C. M. A ‘economia solidária’: uma crítica com base em Marx.2011
Dagnino, R.; Novaes, H. T. As forças produtivas e a transição ao socialismo: contrastando as concepções de Paul Singer e IstvánMészáros. In: II Colóquio Internacional Cátedra Unesco-Unisinos - V Encontro de Estudos sobre o mundo do trabalho. São Leopoldo, 2005, Resumos ampliados.
Páteo, F. V. SOCIALIZAR O MERCADO OU DESMERCANTILIZAR A SOCIEDADE: OS CAMINHOS DOS EMPREENDIMENTOS SOLIDÁRIOS NA BUSCA PELO RECONHECIMENTO DE SEU TRABALHO. Trabalho de Conclusão. FEA-USP.Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Pacheco Costa; Co-Orientador: Prof. Dr. José Eli da Veiga2008.
SENAES (2006)
Sachs, I.SACHS, I. Desenvolvimentohumano, trabalhodecente e o futuro dos empreendedores de pequenoporte no Brasil. Brasília: Sebrae, 2002.
Pochman, M. Mercado de Trabalho. IPEA. 2004.
Zizek, S. (Org.). Mapa da Ideologia. Contraponto. 1996
Cruz, A. C. M. da. A diferença da igualdade: a dinâmica da economia solidária em quatro cidades do Mercosul (tese de doutorado defendida no Instituto de Economia da Unicamp, com orientaça6o de Márcio Pochmann. 2006).
[i]“As incubadoras tecnológicas de cooperativas populares (ITCPs) tiveram no Brasil suas raízes no movimento de Ação da Cidadania liderado pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, o qual estimulou a criação, em 1993, do COEP – Comitê de Empresas Públicas no Combate à Fome e pela Vida. No Encontro do COEP, em 1995, ao se discutir uma proposta da Fundação Oswaldo Cruz – FIOCRUZ para o entorno de seu campus em Manguinhos, uma área favelizada da Zona Norte do Rio de Janeiro e, sabendo que a UFRJ tinha uma incubadora de empresas, surgiu a ideia “por que não incubar cooperativas na comunidade, com vistas à inclusão social, geração de trabalho e renda e redução da violência””. (Páteo, p. 42).
Crédito da foto da página inicial: Wellington Lenon/Unicopas
Reinaldo Pacheco da Costa é Engenheiro Mecânico pela PUCRGS; M.Sc. em Eng. de Transportes pela UFRJ e D.Sc. Enga. de Produção pela USP. Especialista em Portos pelo Instituto Militar de Engenharia – IME. Professor do Depto. de Engenharia de Produção da EPUSP. Prof. e ex-Diretor da Fundação Vanzolini, e Prof. do MBA USP/ESALQ. Coordenador da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares da USP (ITCP-USP) desde 2010. Coordenador de dezenas de projetos (públicos e privados) de Economia Popular e Solidária, e de Economia da Produção.
Comments