Em pouco tempo, a imprensa mundial registrou uma sequência de eleições com resultados entre o esperado e o surpreendente. Primeiro, a votação pela saída britânica da União Europeia, o Brexit. Depois, a vitória de Trump. Nas duas ocasiões, apareceu em cena um agente social que parecia ter se desbotado pela globalização, até quase ficar invisível. É a classe trabalhadora ou, mais especificamente, aquilo que no mundo anglo-saxônico se tem chamado de “White working class” (WWC), a classe trabalhadora branca, cada vez mais empobrecida e humilhada.
Nesse contexto, vale a pena resumir algumas ideias de um interessante livro de Justin Gest – The New Minority: White Working Class Politics in an Age of Immigration and Inequality (Oxford University Press, 2016). Gest é professor da George Mason University, no estado de Virginia.
O comentário que segue é menos que uma resenha, é uma seleção de algumas ideias, certamente empobrecendo a rica narrativa do autor. Gest escolheu duas comunidades para estudar o comportamento político desse segmento social.
Uma, a East London, uma antiga região operária em que se localizava, por exemplo, a fábrica gigante da Ford, nos anos 1950 (ainda tinha uns 30 mil empregados em 1975, caindo para 7 mil em 2000).
Outro, Youngstown, Ohio, no meio-oeste americano, outrora cinturão da indústria, o centro do aço no mundo, nos 25 gloriosos do pós-guerra. Não é um vilarejo caipira. Tem dois teatros sinfônicos de padrão internacional, museus e galerias, uma universidade com 15 mil alunos, um espaço verde desenhado pelo mesmo cara que projetou o Central Park de Nova York.
Nos dois espaços, o furacão globalizador deixou atrás de si um rastro de destruição e um cenário povoado por sobreviventes inconformados. Mas são duas regiões devastadas, alguns traços são repetidos: desindustrialização, empregos “exportados” para o sul e para o exterior, leis trabalhistas e ambientais relaxadas, na vã esperança de atrair novos negócios (como a predatória exploração do xisto), sindicatos enfraquecidos e uma demografia cada vez mais preocupante para os ‘brancos’. Em suma, o furacão cria um grande contingente de “deixados para trás” da globalização, modernização, do “progresso”.
Em resposta, a WWC mergulha em construções nostálgicas sobre ‘velhos bons tempos’ imaginários que fortalecem o ressentimento contra as grandes empresas que abandonaram a cidade, o governo que nada vez para evitar isso e uma rejeição a minorias que alteram a composição da vizinhança.
A WWC é um segmento significativo do universo eleitoral, mas vota menos do que se esperaria. Ainda hoje, 50% da população americana é branca sem curso superior (um indicador aproximado de “classe trabalhadora branca”). No entanto, esse segmento representa apenas 39% dos votantes em 2008 e 35% dos votantes em 2010. Sub-representação estatística no universo eleitoral ativo.
Ao lado disso, esses brancos veem o país mudar (tanto quanto seu bairro): a população “não branca” representa 37% da população total dos EUA em 2015, mas quando você olha para a população de menos de 5 anos isso sobe para 50%, ou seja, a velocidade de crescimento dos “não-brancos” é bem maior.
Assim, não deveria surpreender, no nível nacional, uma política de ressentimento, plataformas xenófobas, apoio a políticas de cortes em programas sociais (que, supostamente, favorecem, desmerecidamente, as minorias não brancas).
Um elemento interessante é colhido pelo autor nos escritos de um autor conservador (um republicano de centro direita, Dennis Jay Saffran). Diz ele que a WWC tende a ser predominantemente liberal (intervencionista, democrata) nas questões econômicas e conservadora em questões “sociais”, o que levaria a uma armadilha para os democratas, já que quando se enfatiza a questão “social” os indivíduos votam contra seu interesse econômico. Ou seja, dependendo de como você conduz a pauta, já se coloca no lado perdedor. Depende de como você polariza a disputa. Quando faz a pergunta, você dirige a escolha: centralize uma campanha em questões morais marteladas pela direita, seu time já sai correndo atrás do resultado adverso.
Nas entrevistas colhidas pelo autor – um farto registro – há um detalhe curioso. A maioria dos seus “wwc people” começa sua fala “esclarecendo” que não é racista ou preconceituosa. É praticamente um padrão. Comenta ele: ao que parece, eles sabem que suas ideias seriam desqualificadas por esse rótulo, enquanto, na verdade, querem expressar uma visão legítima de como suas vidas foram transformadas. A acusação de racismo deslegitimaria suas narrativas, invalidaria suas queixas e, por isso, preventivamente, eles começam por aquela “declaração de fé”.
Youngstown talvez chame mais a atenção do leitor de hoje (hoje, literalmente), porque nesse tipo de região e nesse tipo de eleitor, Trump parece ter fincado uma vantagem que garantiu sua vitória.
A fervilhante cidade industrial, desde 1980, perdeu dezenas de milhares de empregos na indústria do aço. Um baque de 1,5 bilhão em salários de operários industriais. A cidade tinha quase 200 mil habitantes em 1970, tem hoje menos de 70 mil. E, nesse total, os brancos, que eram 80% da cidade, foram virando minoria, importante, mas declinante (47% no último censo).
A perda da indústria significou perda de salários, impostos e taxas. Mas significou também o desaparecimento de redes outras – planos de saúde e de aposentadoria, moradias construídas pelas empresas, programas comunitários. E hábitos de vida social vinculados a tudo isso.
Para quem olha os mapas eleitorais da eleição de 2008, 2012 e 2016, comparando onde Trump ganhou e onde os democratas recuaram, é interessante o comentário do autor:
“Embora estejam distribuídos por todo o país, há significativa concentração da WWC em regiões pós-industriais como Youngstown, ao largo do Alto Meio-Oeste e dos Grandes Lagos —englobando vários estados oscilantes (swing states) em eleições nacionais. Eles incluem Pennsylvania, West Virginia, Ohio, Indiana, Michigan e Wisconsin. De acordo com vários estudos, a WWC soma perto de 53% do eleitorado em Michigan, 55% na Pennsylvania, 58% em Wisconsin, 62% em Ohio, 66% em Indiana e cerca de 70% em West Virginia”
E instiga ainda mais:
“Pesquisadores, organizadores de campanhas se perguntam se os eleitores de Youngstown se retiraram permanentemente da disputa, perdendo qualquer esperança no governo. Contudo, a evidência sugere que os cidadãos de Youngstown — e muitas cidades pós-traumáticas do American Rust Belt (cinturão da ferrugem) — estão simplesmente esperando por partidos e organizações que os mobilizem.”
Será que é assim?E será que isso está sendo percebido por essas organizações?
Para falar a esse segmento, segundo Justin Gest, é preciso:
1.Apresentar candidatos fora das elites, candidatos extraídos do meio popular.
2.Empregar narrativas da classe trabalhadora, com sua linguagem, seu estilo e seu ponto de vista.
3.Não confundir classe trabalhadora com os indefesos ou derrotados. Trabalhadores querem ser vistos como independentes, autossuficientes, batalhadores.
4.Não parta da ideia de que sindicatos são sinônimo de classe trabalhadora. Os tempos mudaram, a maior parte dos trabalhadores não são sindicalizados e por vezes nem sindicalizáveis.
5.Desafie a visão da nostalgia com a da esperança.
Como se percebe, está aí um conjunto de problemas que atravessam fronteiras, marcando numerosas cidades e países “pós-traumáticos’, comunidades em que estão quem sabe adormecidos, temporariamente, aqueles que foram “deixados para trás” pela corrente globalizadora, supostamente modernizante.
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