Bolsonaro parte para Washington com a diplomacia brasileira em transe político, administrativo e místico. Principalmente místico.
Entenda-se. O vibrante chanceler pré-iluminista é um ser espiritual. É desapegado de valores materiais. Afirmou recentemente que o Brasil não pode renunciar a sua alma e a seus valores para vender soja e minérios.
Supomos que o chanceler tenha experimentado tal epifania após contemplar, em êxtase místico, o exemplo supremo do novo messias do Ocidente, o santo Trump.
Como se sabe, o novo messias do Ocidente está em santa cruzada contra a China, a Rússia, os países islâmicos e outras nações malignas que ameaçam os valores da cristandade e a alma do mundo ocidental.
Evidentemente, tal cruzada não tem relação alguma com disputas geoeconômicas e geopolíticas. Trata-se de embate que se processa no diáfano campo cultural e metafísico, independentemente de grosseiras e banais motivações materiais, como às relativas à economia, ao comércio e à realpolitik das relações internacionais.
Assim, a ofensiva de Trump contra a China, por exemplo, não teria relação com o espaço cada vez maior que esse país vem ocupando na economia e no comércio mundiais, mas sim com a desinteressada defesa da alma ocidental. Da mesma forma, a ofensiva do messias do Ocidente contra a Venezuela é piedosa intervenção humanitária, totalmente desvinculada do odor de enxofre emanado da maior jazida de petróleo do mundo.
Porém, em intervalo racional de seu êxtase místico, o chanceler templário nos deu razões materiais, mundanas, para que o Brasil alinhe-se, de forma automática, aos interesses desinteressados do novo messias.
Segundo ele, o Brasil teria de alinhar-se aos EUA de Trump porque, entre o início do século XX e meados da década de 70, o nosso país teria crescido muito devido a uma associação estreita com os EUA.
Bom, é provável que tal tese tenha lhe vindo de eflúvios místicos insondáveis e não verificáveis, mas os mundanos e vulgares dados da realidade empírica não dão suporte à hipótese que preenche a sua alma ocidental.
No gráfico baixo estão os dados oficiais sobre os destinos das nossas exportações, entre 1901 e 2006. Como se nota, a participação percentual dos EUA nesse fluxo só tem grande destaque em dois períodos: o da Primeira Guerra Mundial, por motivos óbvios, e o compreendido entre a Segunda Guerra Mundial e meados da década de 1960, quando a Europa ainda se recuperava do grave conflito interno.
Do início do século XX até a Segunda Guerra Mundial, excetuado o breve período da Primeira Guerra, a Europa tem importância comercial e econômica bem maior para o Brasil. Já no período compreendido entre meados da década de 1960 até 2006, a Europa retoma uma ligeira prevalência, em relação aos EUA, e outras regiões começam a adquirir importância, como a América do Sul e a Ásia.
Quanto aos investimentos, o estoque de investimentos diretos dos EUA no Brasil só se igualou ao estoque de investimentos britânicos, desconsiderados todos os outros países, portanto, após a Segunda Guerra Mundial. Ademais, na década de 50 e 60 e 70, os investimentos mais importantes foram os públicos, feitos por estatais e o BNDES.
O que a história e os mundanos dados empíricos dizem é que o Brasil se sai melhor quando diversifica suas parcerias e não aposta suas fichas em um só país. Além de permitir maior lucro material, a diversificação contribui para fator imaterial de enormes consequências práticas: a ampliação da autonomia e da soberania. Ou, colocando a questão em termos que agradariam ao chanceler pré-iluminista, para tornar a alma brasileira mais leve e livre.
O exemplo de países que apostaram numa relação privilegiada com os EUA, como o México, não é bom. A alma mexicana, tão longe de Deus e tão perto dos EUA, hoje sofre com 50% da sua população abaixo da linha da pobreza e se sente aprisionada pelo muro que o novo messias do Ocidente quer construir.
Ainda assim, nosso cordato capitão e seu chanceler insistem, contrariando os interesses objetivos do Brasil, em aliar-se aos EUA de Trump, em sua cruzada contra um mundo multipolar que desafie a alma ocidental. Dessa forma, renunciaremos aos prazeres terrenos dos superávits comerciais, da diversificação dos investimentos, da cooperação múltipla e da presença ampla e autônoma nos foros mundiais, em troca de um modesto lugar nas hostes espirituais do novo messias.
Contudo, mesmo esse modesto lugar não está assegurado. Como dizia o grande filósofo de Pau Grande, Garrincha, muito mais importante para a alma nacional que o astrólogo de Richmond, será necessário combinar com os russos, que, nesse caso, são norte-americanos.
Trump, muito influenciado por Samuel P. Huntington, o humanista autor de “O Choque de Civilizações”, não considera as almas latino-americanas como partícipes da civilização ocidental, restrita geograficamente à America do Norte e à Europa. Nós, brasileiros, pertenceríamos à civilização latino-americana, uma subdivisão inferior da ocidental. Nossas almas e as de nossos vizinhos não estariam incluídas no Ocidente. Por isso, o novo messias constrói o muro para impedir de entrar no paraíso os corpos latinos que as carregam.
O novo messias também está muito empenhado em proteger seu paraíso espiritual de bens e serviços terrenos provenientes de todos os países, inclusive o Brasil, que já sofreu com barreiras contra o aço, alumínio e outros produtos. Em troca, o Brasil altruísta do chanceler piedoso deverá oferecer aos EUA cotas sem tarifas para o trigo americano, prejudicando o MERCOSUL, bem como a entrada sem vistos para cidadãos norte-americanos, sem esperar reciprocidade das almas superiores.
Será, pois, tarefa difícil o Brasil conquistar um lugar de destaque nas legiões metafísicas do novo messias protecionista, nos parcos 20 minutos que foram reservados ao capitão em sua próxima viagem aos EUA. Provavelmente, o chanceler espiritual voltará de lá apenas com corriqueiras conquistas terrenas, como a concessão da Base de Alcântara para os EUA.
Tarefa ainda mais difícil, um trabalho de Sísifo, será assear a imagem de Bolsonaro no exterior. O Itamaraty, mesmo com seu corpo técnico muito competente, não terá condições de competir com a avalanche enlameada de twitters do clã, um Brumadinho político.
A julgar pela estratégia estulta exibida em Genebra no caso de Jean Wyllys, o tiro sairá pela culatra. Nesse caso, a Casa de Rio Branco é que terá a sua imagem muito afetada. A manifestação da nossa delegação em Genebra, mencionando o traje vermelho de Jean Wyllys, foi, talvez, a mais baixa e beócia da história do Itamaraty. É o que dá quando se subverte a hierarquia e o bom senso.
O desastre poderá ser ampliado com a nomeação de lobistas para substituir embaixadores de carreira em postos chave.
É triste ver a outrora sisuda Casa de Rio Branco ser conduzida por gente que parece ter sido transverberada, em êxtase místico, pela flecha da idiotia. Mais triste ainda é constatar que quem se alinha à alma alheia já perdeu a sua.
Crédito da foto da página inicial: EBC
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