Publicado no Jornal do Brasil em 11-4-2017
O governo Temer, empossado em decorrência de um impeachment bastante controverso (que corrobora para a deterioração do consenso quanto ao teor democrático atribuído às instituições), vem executando um programa não sancionado em pleito eleitoral algum e social e economicamente regressivo. A atual gestão presidencial não conta com o respaldo da opinião pública. Segundo pesquisa CNI-IBOPE divulgada em 31 de março, 55% dos entrevistados consideram o governo Temer ruim ou péssimo e apenas 10% avaliam-no como ótimo. O Latinobarómetro de 2016 indicou que apenas 9% dos brasileiros acreditam que se governa para o bem de todo o povo.
Se uma das principais estruturas de alavancagem da legitimidade do regime democrático é a soberania popular expressa pelo voto universal, sendo a outra o desempenho do governo, então o país está no pior dos mundos, pois não conta, efetivamente, na conjuntura pós-impeachment, com nenhuma dessas duas dimensões do processo de legitimação da democracia. Para agravar o quadro, diga-se de passagem, a crise produziu um fenômeno inédito: o desaparecimento da confiança interpessoal. O país está na desordem e em trajetória de regresso ao desempenho decadente tanto dos índices de desigualdade quanto da estrutura produtiva. No entanto, o slogan do governo é “Ordem e Progresso”.
A democracia pode ser entendida apenas como um regime político cujos procedimentos formais permitem a seleção periódica dos representantes, através do mecanismo eleitoral, desde que acompanhado de alguns requisitos, como a idoneidade do pleito, as liberdades de associação (não só partidária) e de expressão e o direito à informação. Mas a democracia também pode ser vista em uma dimensão mais ampla que a de um regime institucional, para a qual importa haver uma sociedade democrática, estruturada em uma cultura política de suporte aos valores, às instituições e às práticas da democracia.
De 2015 para cá, com a emergência de uma nova direita, estimulada pela grande mídia e apoiada no conservadorismo liberal e, em certa medida, em valores autoritários; com o casuísmo de certas decisões e práticas institucionais, a começar pelas que resultaram no impedimento, mas também aquelas observadas nos abusos jurídicos da Operação Lava Jato, que têm sido referendados pelo TRF-4 com base no argumento de que “uma situação inédita, [merece] um tratamento excepcional”; com o aumento da repressão policial aos movimentos sociais, inclusive, por exemplo, no âmbito das instituições de ensino, como se estivéssemos na velha ditadura militar; enfim, essa involução no conteúdo das ações de atores com recursos de poder no Estado e na sociedade aponta para uma reversão do teor de democracia nas instituições e na cultura política.
Por outro lado, afora a dimensão política, há também em curso uma regressão imensurável nas esferas econômica e social. Desde antes de assumir a Presidência, o PMDB vinha defendendo a realização de um conjunto de reformas de cunho liberal, visando, em tese, resgatar a “confiança” dos investidores e retirar o Brasil da recessão iniciada no segundo semestre de 2014. O documento “Uma Ponte para o Futuro” enfatizava a necessidade de “executar uma política de desenvolvimento centrada na iniciativa privada”, colocando em primeiro plano as empresas (cuja racionalidade formal, de mercado, apóia-se na busca sistemática do lucro), e não a Nação.
Obviamente, as empresas têm uma importância-chave, porém, a nação é a construção histórica de um povo que, organizado politicamente por meio de seu Estado, procura ser soberano, isto é, dispor dos meios necessários para projetar e realizar de maneira autônoma o seu futuro coletivo. Uma racionalidade econômica apartada de um projeto nacional de inclusão popular da cidadania vai de encontro ao ideal democrático de igualdade e aponta para a instabilidade política, sintoma claramente em manifestação nesta conjuntura em que os interesses neoliberais, cuja operacionalização tem produzido em todo o mundo fortes tendências de exclusão social, estão sendo convertidos em decisões de políticas públicas.
A constitucionalização, por vinte anos, de um teto de gastos públicos com base na variação da inflação do período anterior marca uma ruptura com o pacto social firmado na Constituição de 1988 e impede que o Estado cumpra a função de indução do desenvolvimento, que requer crescimento, para o que os investimentos públicos são fundamentais. A mudança no marco regulatório do pré-sal desobriga a Petrobras de participar em no mínimo 30% da extração de petróleo, para abrir caminho às multinacionais, ou seja, ao aprofundamento da desnacionalização da estrutura produtiva e da dependência externa. O fim da política de conteúdo nacional para a cadeia produtiva de petróleo e gás enterra uma iniciativa importante de estímulo à industrialização e ao desenvolvimento tecnológico. A regulamentação da aquisição de terras para estrangeiros visa que o capital forâneo se ocupe do agronegócio e da destruição ambiental. (Será mera coincidência o anúncio, depois não confirmado, de ocorrência do mal da vaca louca no Rio de Janeiro, seguido da exagerada Operação Carne Fraca?).
A aprovação da terceirização das atividades-fins e o intuito de abolir a legislação trabalhista apontam para a versão pós-moderna da superexploração do trabalho nas terras tupiniquim, onde há uma das nações mais desiguais do planeta. A proposta de estabelecer uma idade mínima de aposentadoria para homens e mulheres aos 65 anos e um tempo de contribuição de 49 anos para o cidadão usufruir do benefício integral, enfim, a reforma da previdência vai, na prática, restringir muito os estratos sociais mais vulneráveis ao acesso a esse direito, prejudicar os que possuem expectativa de vida menor e os que estão no mercado informal de trabalho. Por outro lado, a dívida ativa das empresas para com o INSS é de R$ 462 bilhões, três vezes o déficit do RGPS (Regime Geral da Previdência Social) em 2016 (R$ 151,9 bilhões). Vários programas estão sendo engavetados, por exemplo, o Ciência Sem Fronteiras. Seremos a fronteira sem Ciências? Outros, que tinham uma função relativamente importante para a sustentação do investimento e da atividade, como o Minha Casa Minha Vida e o Programa de Aceleração do Crescimento, passaram por uma forte redução de recursos. O ajuste recessivo só piora as condições precárias e de calamidade pública de alguns estados da federação e de áreas-chave como a segurança pública.
Essas decisões e políticas públicas visam reorientar a organização formal da sociedade segundo princípios liberais de empresa e concorrência. Visam induzir a que a dinâmica das relações sociais seja voltada em grau muito maior para a eficiência de mercado, mas de uma concepção desregulada de mercado, um mercado selvagem e, como nunca antes na história, promotor de injustiças e desequilíbrios estruturais. O Estado está sendo profundamente transformado, reduzido, com a concentração das suas atividades na efetivação jurídica dos contratos. Abre-se ao setor privado uma maior capacidade de impor as decisões de alcance coletivo, de modo a se subordinar o todo às partes mais poderosas.
A aprovação e implementação do conjunto dessas medidas em tempo recorde na história do Brasil deve-se à posição politicamente dominante alcançada pela coalizão de classes e parlamentar que sustentou o impeachment, nucleada nos grandes rentistas, financistas e industriais, que, por meio de suas associações de interesses e outros laços, têm ampla influência e suporte nos atuais partidos governistas. Essa coalizão possui também tentáculos nas elites da burocracia pública de todos os Três Poderes e nos segmentos conservadores da classe média, que se mobilizaram para o impeachment.
Há um forte movimento no sentido de buscar atrair a poupança externa, ou seja, as empresas estrangeiras, as multinacionais, que vêem o país como uma plataforma de valorização do capital. A coalizão no poder promove um aprofundamento da associação dependente, tanto material quanto ideológica, com as grandes corporações dos países do Hemisfério Norte. Os trabalhadores, formais e informais, e os setores médios ligados a sindicatos foram excluídos da base sociopolítica do governo a partir do impeachment, tornando-se politicamente mais frágeis, isto é, menos capazes de influenciar a tomada de decisões. Entretanto, a reforma da previdência parece anunciar uma retomada da ação das forças progressistas. Mas, no que depende do vetor de classes que assumiu o leme do Estado, a estrutura social e de poder do Brasil caminha no sentido de aprofundar o seu caráter imensamente desigual.
Ocorre no Brasil a crescente fusão do poder econômico e do poder político, em contexto de dependência nacional frente aos centros financeiros e tecnológicos internacionais. O compromisso entre capital e trabalho para o desenvolvimento nacional, institucionalizado na Era Vargas e recuperado nos governos petistas, é seriamente fragilizado, com graves consequências para a maioria da sociedade, sobretudo os setores mais vulneráveis e dependentes das políticas econômicas e sociais do governo. No lugar desse compromisso são colocadas a desorganização e a desvalorização não só do trabalho, com o aumento da informalidade e da precarização dos empregos, mas igualmente do capital produtivo nacional que, apesar de ter apoiado o impeachment, é acossado, junto com os trabalhadores, pelo aperto do ajuste fiscal de longo prazo, pela valorização cambial e pela política monetária restrita.
Somam-se a tudo isso a continuidade da Operação Lava-Jato e a deflagração da Operação Carne Fraca, que, no intuito de combaterem práticas ilícitas em grandes empresas, direcionaram suas investigações para os setores nos quais o Brasil é internacionalmente competitivo: petróleo, construção civil e agronegócio. A seletividade e a irresponsabilidade da Polícia Federal e do Ministério Público na condução das investigações provocam o desmantelamento de empresas nacionais, gerando perdas significativas para a economia, e beneficiando as corporações internacionais, que passam a ter no Brasil um amplo mercado para operar, inclusive adquirindo gigantescas propriedades rurais.
A desnacionalização da economia, ao deslocar os núcleos dinâmicos do país para o exterior, reforça a dependência em relação aos centros decisórios mundiais e às estratégias dos interesses estrangeiros. O ataque simultâneo ao trabalho e ao capital nacionais torna o país menos capaz de oferecer à maioria dos seus cidadãos possibilidades de engrandecimento individual e coletivo, assim como de efetivar a soberania popular no que diz respeito aos rumos históricos da Nação. Enfim, o ultraliberalismo do atual governo recria a desordem e o regresso à trajetória de decadência do Brasil. 2018 trará um fundo ao poço que parece não tê-lo? (Agradeço ao apoio de Felipe Maruf Quintas).
* Marcus Ianoni é cientista político, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), ex-pesquisador visitante da Universidade de Oxford e estuda as relações entre Política e Economia.
Crédito da foto da página inicial: Rovena Rosa/Agência Brasil/Carta Capital
Comments