Publicado em Carta de Conjuntura da FEE 08-2014
O livro de Thomas Piketty, “O Capital no Século 21”, obteve uma repercussão incomum entre os textos advindos da academia. O sucesso não foi fortuito. Após 15 anos de pesquisa, o autor aborda de maneira acessível a questão distributiva, com o enfoque temporal iniciando-se no ano de 1700, fazendo isso tanto do ponto de vista da renda, uma variável fluxo, quanto da riqueza, uma variável estoque.
Sintetizando seus resultados, o autor averigua três grandes fases recentes. Uma fase de crescimento da desigualdade, até a década de 20 do século 20, outra de redução da desigualdade, entre 1930 e 1980, e, desde então, uma fase de crescimento da desigualdade, com tendência de acentuação de disparidades. No período atual, em países como França, Alemanha, Grã-Bretanha e Itália, os 10% mais ricos detêm aproximadamente 60% da riqueza nacional. E, invariavelmente, os 50% mais pobres possuem menos de 10% da riqueza nacional.
Nos Estados Unidos, o decil mais alto detém 72% da riqueza nacional, enquanto os 50% mais pobres possuem 2%. No que tange aos bilionários, de 1987 a 2013, a média do patrimônio dos 1/100 milhões mais ricos do mundo passou de US$ 3 bilhões para US$ 35 bilhões em 2013, um crescimento de 6,8% a.a. Já a média anual do crescimento econômico do período foi de 2,1%, e da renda média, de 1,4%.
Com relação à renda, o 1% mais rico, nos EUA, apropriava-se de 10% da renda em 1980 e passou a 20% em 2010. O 0,01% mais rico obteve expansão muito elevada, de, aproximadamente, 2% em 1980 a 8% em 2008. Isso significa que cada indivíduo nessa faixa tem uma renda aproximadamente 100 vezes superior à média. Entre 1977 e 2007, o 1% mais rico absorveu 60% do crescimento da renda estadunidense.
É difundida a visão de mundo de que os agentes possuem rendimentos proporcionais à contribuição de cada um ao processo produtivo, com o esforço e o mérito pessoal. Assim, a educação seria a força difusora do conhecimento e da tecnologia capaz de ajustar as desigualdades e permitir remunerações adequadas à destreza. Entretanto, não é isso que se observa.
Nas últimas décadas, em um ambiente de crescimento moderado, os salários mais baixos nos países desenvolvidos ficaram estagnados, e os mais elevados cresceram. A elevação educacional foi concomitante com o crescimento da desigualdade. Embora a produtividade marginal, a habilidade e a tecnologia deem uma explicação, até certo ponto, plausível para diferentes remunerações no longo prazo, é preciso demarcar as limitações explicativas.
As referidas fases ocorreram, sobretudo, por questões políticas. No período entre guerras, o capitalismo foi mais regulado e houve a implementação da progressividade tributária. Na década de 80 do século 20, houve reversão de políticas regulatórias, e o mundo entrou na fase neoliberal. Os tributos sobre os estratos mais elevados e sobre a herança foram reduzidos.
O autor efetuou uma comparação entre as rendas obtidas pelo 1% mais rico devido à sua herança e pelo 1% mais rico devido ao seu trabalho, em relação aos 50% mais pobres. Para aqueles que vivem do seu trabalho, o padrão de vida é 10 vezes maior do que o dos 50% mais pobres, de forma estável, de 1790 até sua projeção em 2030. Já para os que vivem de sua herança, em 1790 seu padrão de vida era 27 vezes maior do que os 50% mais pobres. Durante vasto período, o 1% mais rico o era por herança.
A sociedade meritocrática não permite que figure no topo quem não é herdeiro de uma fortuna. Aos perdedores, a dominação é justificada a partir da justiça, da virtude, do mérito e da baixa produtividade a quem está na base da pirâmide social.
Claramente, a educação tem um papel mais relevante hoje do que outrora, o que não significa que as pessoas tenham as mesmas oportunidades. Desde 1920, cresce a parcela da população que recebe de herança um patrimônio superior ao que um indivíduo que está entre os 50% mais pobres recebe de salário ao longo de sua vida inteira.
No Brasil, é sabido que a desigualdade de renda e a pobreza têm caído nos últimos anos. Entre 2001 e 2012, os extremamente pobres passaram de 15,2% para 5,3%, e os pobres de 35,1% para 15,9% da população. Nesse interregno, a desigualdade de renda do trabalho, medido pelo índice de Gini, caiu 11,1%.
De toda forma, a estrutura tributária brasileira não foi alterada. Ela persiste concentrada no consumo (48,6%), e não na renda (18,4%) como nos países desenvolvidos. A alíquota máxima de Imposto de Renda no Brasil é de 27,5%, era 35,0% em 1996. Na Suécia, na Alemanha e nos Estados Unidos, a alíquota máxima é de, respectivamente, 56,7%, 45,0% e 39,6%. O imposto sobre grandes fortunas estabelecido pela Constituição Federal de 1988 nunca foi regulamentado.
Dados os valores de democracia e de justiça social, há muito que avançar, haja vista os traços aristocráticos existentes. O estudo mostra que a iniquidade não advém de princípios racionais, e sim arbitrários. A constatação geral é que os mais ricos o são, majoritariamente, por herança, e não por mérito pessoal. No Brasil, é imperativo que se enfrente o problema de forma efetiva.
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