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Bolsonaro: o mito

No momento em que estiver lendo este artigo, o segundo turno estará definido, com a presença de Bolsonaro, o mito, contra Haddad – mas poderia ser qualquer outro. Vendo diversos apoiadores do capitão chamando-o de “mito”, acabei por me convencer de que isso é verídico. De fato, trata-se de um “mito”. Entretanto, não no sentido pensado originalmente pelos bolsonaristas, mas noutro, qual seja, “uma representação de personagem amplificada pelo imaginário coletivo”. Ou seja, Jair Bolsonaro não passa de uma peça de ficção, criada exatamente para enganar a população, se aproveitando de traumas advindos de uma das maiores crises brasileiras, não só econômica, como política e moral.

Como o próprio candidato afirma, ele não conhece e não entende de temas como economia, saúde e educação, enfim, assuntos que todo candidato a presidente de qualquer país minimamente sério deveria se posicionar e conhecer para poder enfrentar as complexas situações enfrentadas durante o mandato. Portanto, não são essas propostas que normalmente os seguidores de Bolsonaro apontam para justificar seu voto. Na verdade, são quatro pontos que, de forma eloquente, buscam justificar o voto no capitão: (i) Bolsonaro vai defender os valores da família; (ii) Bolsonaro vai acabar com a criminalidade; (iii) Bolsonaro é o oposto do PT; (iv) Bolsonaro é contra tudo o que está aí (na política). Vamos verificar cada um deles.

Sobre a primeira questão, Bolsonaro já está no terceiro casamento – não tenho nada contra, particularmente, mas para quem defende “os valores da família”, essa postura não faz o menor sentido. Ademais, uma pessoa autoritária, defensora da violência e da tortura, racista, homofóbica, machista, dentre outras coisas, pode ser caracterizada realmente como defensora dos “valores da família” ou dos valores verdadeiramente cristãos?

Para exemplificar, cito algumas de tantas frases absurdas de Bolsonaro, de artigo que recomendo fortemente de Dani Cronemberger (“Querida família: por que #EleNão”): “O erro da ditadura foi torturar e não matar.”– entrevista programa Pânico na TV, 2016; “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Prefiro que um filho meu morra num acidente.”– entrevista Playboy, 2011; “Quem procura osso é cachorro”– cartaz fixado na porta de seu gabinete, sobre a busca de famílias pelos restos mortais de seus parentes desaparecidos durante a ditadura; “Eu sou favorável à tortura, e o povo é favorável a isso também. Através do voto você não vai mudar nada neste país, absolutamente nada. Você só vai mudar quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro.”– entrevista TV Bandeirantes, em 1999; “Eu não empregaria [mulheres e homens] com o mesmo salário. Mas tem muita mulher que é competente”– entrevista Rede TV!, em 2016, explicando que mulher deve ganhar menos porque engravida. Ou seja, trata-se de uma hipocrisia uma pessoa defender valores da família e ao mesmo tempo ser capaz de dizer tais frases.

Sobre a segunda, a proposta mais propalada de Bolsonaro para acabar com o problema da violência no país é armar a população. O Brasil já é um dos países em que mais morrem civis no mundo, mas também está entre os que mais morrem policiais no mundo. Você realmente acredita que armar ainda mais pessoas vai ser a solução para esse problema? Alguns respondem que, nos Estados Unidos da América (EUA), o armamento é menos regulamentado e que há menos violência. Todavia, esquecem-se de que os EUA são um país desenvolvido, com mais recursos e tecnologia para o combate à criminalidade; é um país com mais oportunidades e normalmente com menos desemprego que o Brasil. Por isso, não é uma comparação justa. No entanto, ao se comparar a taxa de homicídio por 100 mil habitantes entre os EUA e outros países desenvolvidos, como Japão e outros europeus, essa taxa nos EUA é muitas vezes maior. Diante disso, o armamento da população não é a solução para nada!

O terceiro argumento é que Bolsonaro é contra o PT. Os discursos do capitão, que contribuem para o imaginário coletivo, como dito anteriormente, não passam de discursos. Na prática, porém, na grande maioria das vezes votou juntamente com o PT. Votou contra o Plano Real, votou contra a reforma da previdência, contra o fim das aposentadorias especiais para senadores e deputados, contra a quebra de monopólio das telecomunicações, a favor de benefícios fiscais para grandes empresas etc. E mais recentemente, inclusive, disse que Lula seria um grande presidente, mas que está “fora de combate”.

Finalmente, o quarto diz que o capitão é contra a política da forma que está aí. Ele omite, no entanto, que é deputado há quase 30 anos. Assim como qualquer outro político, tem parentes apadrinhados, no caso, três de seus cinco filhos são políticos (Flávio se elegeu senador, Eduardo é deputado federal e Carlos é vereador). Foi filiado ao PPR, PP, PFL (antigo DEM), PTB e PSC (que foram da base de governo de Dilma e de Lula). Teve seu patrimônio multiplicado em muitas vezes no período, praticou nepotismo cruzado empregando sua esposa e sobrinho em gabinetes de outros políticos, empregou funcionária fantasma, se envolveu em idas e vindas de transferências estranhas de financiamento de campanha pela JBS e seu partido, pagou empresa de vídeo que existe só no papel, dentre outras várias coisas… Recentemente, recebeu o apoio da bancada BBB (Bala, Boi e Bíblia), o famoso “centrão” do Congresso, composto pelos partidos mais fisiológicos. De novo, Bolsonaro pode ser tudo, menos um outsider da política. Na verdade, nada mais é do que um político profissional.

Portanto, os motivos propalados para se votar em Bolsonaro realmente não fazem o menor sentido, o que tornam o “mito” apenas um fruto de imaginação das pessoas. Contudo, além de tudo isso, o candidato optou por tentar se esconder de todas as formas do conhecimento do eleitor desde o início da campanha – tendo relutado em participar de entrevistas e debates eleitorais. Isso precisamente para manter essa reputação inverídica intacta na lembrança do eleitor.

A facada, ato abominável como tantas coisas que o Bolsonaro defende, acabou por fazer com que essa postura de evitar a exposição às pessoas que iriam votar ficasse mais facilitada. Alguns podem dizer que a falta aos debates no final da campanha do primeiro turno foi por recomendação médica. Mas, se assim o fosse, como pôde fazer entrevistas no mesmo período em condições que lhe favoreciam? E por que proibir que seu “futuro ministro da Fazenda” e seu candidato a vice-presidente, eles próprios saudáveis e aptos, realizassem palestras e entrevistas? Não tenha dúvidas, é uma estratégia para manter a farsa, manter esse imaginário de que se trata de um salvador da Pátria.

Dito isso, é necessário reconhecer que essa onda em torno de um sujeito tão medíocre é até certo ponto natural. Os movimentos de junho de 2013 parecem ter sido uma espécie de autocrítica dos próprios cidadãos para com os problemas nacionais, que se refletem no subdesenvolvimento do país, em última instância. Vivemos, desde então, uma das maiores crises econômicas, políticas e morais do país, como dito inicialmente. Num cenário traumático como esse, com desemprego em níveis absurdos, com tamanha corrupção sendo descoberta (sim, antes os casos não eram sequer investigados), opções extremas tendem a ganhar força. Exemplos históricos não faltam, seja na Alemanha, na Itália, entre outros.

Quis o destino que no ano que nossa Constituição completa apenas 30 anos de existência (apenas três décadas e já a terceira mais longeva!), que no segundo turno exista um candidato tão retrógado como o Bolsonaro contra outro candidato democrata, que defende a Constituição e as instituições dela advindas.

Sobre isso, me permito citar uma parte de artigo recente de Levitsky (na Folha de São Paulo): “Uma queda ao autoritarismo — mesmo que breve — eliminaria décadas de esforços de construção de instituições. (…) Historicamente, (…) a democracia entra em colapso a cada vez que acontece uma crise. Como resultado, as instituições jamais têm tempo para fincar raízes. (…) Para se consolidarem, as democracias precisam sobreviver a algumas tempestades muito fortes. Nos Estados Unidos, a democracia passou pela guerra civil, pela Grande Depressão da década de 1930 e pela Segunda Guerra Mundial. Se você abandona a democracia sempre que surge uma crise, a democracia jamais se consolida”.

De fato, o momento exige uma união em torno da democracia, para que possamos atravessar essa tempestade e consolidarmos cada vez mais nossa recente República Democrática. Para isso, Haddad terá que aglutinar as forças da esquerda, da centro-esquerda, do centro e também da centro-direita. Assim, terá que se apresentar como um governo responsável, tanto economicamente, quanto politicamente, abandonando visões extremadas. Quanto a nós, cidadãos, cabe o esforço de jogar luz sobre a ignorância das fake news espalhadas nas redes sociais, sobre as farsas do “mito”, sobre o perigo que a candidatura do capitão representa às nossas instituições democráticas e alertar quanto aos retrocessos nos direitos adquiridos pelos trabalhadores e avanços sociais no caso da vitória da extrema direita.

Povo brasileiro, democratas, nessa semana, para evitar quatro anos de tormenta, “Vem, vamos embora/Que esperar não é saber/Quem sabe faz a hora/Não espera acontecer!” (Geraldo Vandré). Nesse segundo turno, #EleNão, #EleNunca.

Crédito da foto da página inicial: José Cruz/Agência Brasil

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