Já há algum tempo quem lida com políticas regional, urbana, rural ou ambiental trata de articular as noções de espaço e sociedade – “espaço produzido” (Henri Lefèbvre) ou “território usado” (Milton Santos), por exemplo – e insiste ou persiste na ideia de que o território é categoria de análise fundamental, que explicita e dá visibilidade aos confrontos, às diferenças e às tensões que permeiam as relações sociais.
Sob esse ponto de partida metodológico do conflito identificado ao território, torna-se mais fácil contrastar os distintos projetos dos diversos grupos e classes sociais e traçar estratégias consistentes de desenvolvimento.
Território é expressão inequívoca da política, dos homens, mais que das coisas.
São variadas as expectativas de uso do território pelos múltiplos atores, razão pela qual as políticas públicas compreendem também mediações de projetos políticos e expressões da atuação ampla das forças da sociedade na construção de um futuro seu, ferramentas de subversão dos condicionantes do presente, de afirmação de novas trilhas e de desenho de utopias e anseios da população.
Tais movimentos perpassam realidades espaciais específicas, numa dialética de construção e desconstrução das unidades e diversidades que perfazem o todo da Nação.
Políticas não espaciais, ao contrário, tendem a homogeneizar objetos, abstrair iniquidades (congênitas) e desconsiderar condições importantes de existência dos fenômenos. Tendem a segmentar os alvos, sem levar muitas vezes em conta a rica percepção da complexa teia de relações e interações sociais, econômicas e políticas que se processam no território, com toda a noção de totalidade, de inteireza, que este engendra.
No padrão usual de resposta às desigualdades regionais e às demandas de ativação das economias locais, buscamos incluir toscos critérios espaciais nas políticas macro ou setoriais ou então produzir políticas compensatórias específicas para lidar com a dimensão espacial do desenvolvimento, mitigando efeitos perniciosos das demais políticas. Dessa forma, raramente vemos o território no centro das preocupações.
Não há debate mais urgente para o segundo estágio do projeto de desenvolvimento em curso no País que esse de rever e discutir o significado e o papel do território nas políticas públicas nacionais. O desdobramento do modelo exige maior atenção à dimensão territorial das políticas.
A sociedade brasileira resistiu inicialmente com força à adoção dos princípios neoliberais (anos 1980), para, em seguida, vencida pela pressão da dívida, aderir além do que se poderia esperar, a exemplo da abertura comercial (anos 1990, até 2002).
Mas, por fim, remou de novo contra a maré, ao retomar o campo das políticas sociais e transformar o combate à fome e à pobreza em eixo de estruturação do primeiro estágio de um novo projeto de desenvolvimento nacional, orientado para a formação de uma sociedade de consumo de massa.
O Brasil foi talvez o único país do mundo a encontrar nessa conjuntura uma trilha de crescimento com distribuição de renda, o que lhe permitiu seguir reduzindo as desigualdades sociais e regionais na contramão dos impulsos preponderantes nas principais economias do planeta de reconcentração da renda.
Dados recentes divulgados pela ONG Oxfam apontam que pela primeira vez a renda do 1% mais rico deve igualar-se ou até mesmo superar a renda dos demais 99% da população no mundo.
O País não passou incólume à crise, mas tampouco se submeteu às orientações externas usuais. Utilizou a estabilidade monetária, a capacidade fiscal, a oferta de financiamento de longo prazo pelos bancos públicos, a base de recursos naturais e o potencial de expansão do contingente populacional expressivo que ascendeu ao mercado para gerar estímulos à reativação – ao menos por certo tempo – da dinâmica da economia.
O sucesso obtido, porém, corre riscos, pois a capacidade de reprodução do modelo depende crucialmente da substituição paulatina das suas fontes de dinamismo. Manter e intensificar o processo de inclusão social é inegociável, mas há que se reforçar simultaneamente os estímulos ao crescimento da produtividade e às práticas relacionadas à inovação.
Há desafios maiores em dois planos. Por um lado, os investimentos devem manter estreita relação com as grandes apostas produtivas nacionais, especialmente as que valorizam o capital autóctone, as práticas sustentáveis e a qualidade do mundo do trabalho. Tarefa nada trivial no quadro de crescentes disputas competitivas e desaceleração global.
De outro, os investimentos devem desencadear também ações e projetos – e aqui o referencial territorial das políticas cumpre papel de destaque – capazes de assegurar uma redução expressiva das heterogeneidades – inclusive tecnológicas – das estruturas de produção territorialmente identificadas, garantindo infraestruturas mínimas, bases organizacionais e meios de produção adequados para todos os biomas e as regiões.
O ponto que desejo realçar é que, nesse último período, reuniram-se condições excepcionais para que o território emirja como uma referência decisiva para a reorganização do planejamento e das políticas públicas.
E, dessa forma, para que também forneça a base de sustentação de um segundo estágio do projeto de desenvolvimento, reforçando seus impulsos revolucionários para a sociedade brasileira; ou seja, aqueles disruptivos de velhas práticas políticas locais e de estruturas e relações sociais anacrônicas perante os anseios de desenvolvimento da Nação. Mas isso não se deu a contento até aqui.
Organizamos iniciativas para buscar respostas ao primeiro desafio, na linha do que caracterizou o histórico processo de industrialização brasileira. Desenhamos alvos nacionais e encaminhamos decisões que buscaram impulsionar segmentos mais expressivos e densos da economia.
Mesmo assim, os resultados na década apontam para crescentes dificuldades no engate soberano da economia brasileira aos circuitos relevantes da produção mundial, com perda de posição em setores relevantes e estagnação da produtividade e da inovação.
Do outro lado, operamos com menor afinco no que tange ao segundo desafio, cujos alvos são menos perceptíveis à escala nacional. Na articulação de ações espaciais, não fomos muito além de exercícios óbvios e primitivos de apropriação do território, que buscam alinhar ex-post iniciativas e programas em termos de critérios de racionalidade instrumental.
Fizemos pouco ainda para lidar com as políticas territoriais na direção de aproximar e revalorizar as conquistas no campo das políticas sociais. Apenas num conjunto restrito de políticas públicas logramos avançar, de forma algo pontual, na incorporação da dimensão territorial, como em particular na expansão da infraestrutura do ensino técnico e profissional e na interiorização das universidades.
Os dados da década dos 2000 são eloquentes a respeito: muitas das transformações estimuladas pelo conjunto das iniciativas de política social no País, que alteraram a face das regiões menos abastadas, geraram oportunidades dinâmicas que não soubemos aproveitar a contento.
Quando olhamos o desempenho no território dessas estruturas dispersas pelas áreas da periferia vemos que foi ali, junto à dinâmica vigorosa da agroindústria nacional, inclusive de base familiar, que se produziram as mais expressivas taxas de crescimento da produtividade.
Todas as 20 mesorregiões geográficas em que mais cresceu a produtividade e o PIB per capita na década dos 2000 situam-se no Norte, Nordeste e Centro-Oeste. O padrão de configuração espacial que faz do Centro-Sul uma área em que são moderados os desníveis de qualidade de vida começa a se espraiar para as regiões em que outrora a clivagem entre a capital e o interior representava o fosso mais profundo das desigualdades regionais brasileiras.
Há razões objetivas para se avançar na exploração dos potenciais de crescimento dessas regiões com o apoio de um elenco de políticas públicas territoriais articuladas entre si e com as demais instâncias da federação e preparadas para desdobrar, no plano econômico, resultados alcançados no campo social. O desafio nesse segundo plano parece promissor.
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