Entrará hoje em pauta um dos julgamentos mais ansiosamente aguardados por aqueles que, de alguma maneira, pesquisam, lutam e desejam mudanças na política de drogas do Brasil: o Supremo Tribunal Federal fará o julgamento do Recurso Extraordinário n° 636.659, que discute a inconstitucionalidade da criminalização do porte de drogas para uso no Brasil, que está hoje definido por meio do artigo 28 da lei de drogas (Lei 11.343 de 2006).
Como se sabe, tal lei foi fruto de um longo processo legislativo durante quatro anos para introduzir no Brasil uma nova política de drogas, mais centrada na prevenção, atenção e reinserção social dos usuários de substâncias consideradas ilícitas.
Entretanto, quando o legislador decidiu aumentar a pena para o tráfico de drogas e manter o porte para uso de drogas dentro de um capítulo (III), que prevê crimes e penas para o uso de drogas, os avanços pretendidos foram somente discursivos. Pois, na prática e nos cárceres, a situação piorou e muito: nossa população carcerária dos delitos relacionados às drogas saltou de 32.880 mil no ano de 2005 para 146.276 mil presos no final de 2013.
Este hiperencarceramento da pobreza decorre, em boa parte, do fato de que a lei não estabeleceu nenhum critério objetivo que defina se a quantidade de drogas em posse era para uso ou comércio de drogas.
Esta indefinição legal aliada à discricionariedade característica das instituições da justiça criminal brasileira (prendem-se majoritariamente pardos e pretos apesar de todas as classes sociais utilizarem e venderam substâncias consideradas ilícitas) gera uma bomba que, certamente, irá explodir se não começarmos a desmontá-la. E deve ser agora.
Assim, os autores deste artigo (que também contribuíram para a elaboração de um dos Amicus Curiae que sustentará o porquê da inconstitucionalidade da criminalização do uso de drogas no Brasil) vêm aqui expor 10 motivos para que o Supremo Tribunal Federal decida pela descriminalização das drogas:
1.O artigo viola o direito individual à intimidade e vida privada (previsto no artigo 5º da nossa Constituição da República – Art. 5º, X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação).
2.O século 21 é o século da mudança de paradigma na política de drogas, que saiu de um paradigma criminal para um paradigma de saúde pública: países desde o início do século (Portugal, EUA, Uruguai, Canadá) decidiram optar pela descriminalização, legalização, regulação estatal e uso medicinal das substâncias, investindo no referencial médico-preventivo da redução de danos e não na prisão.
3.Em Portugal, as pesquisas realizadas após 10 anos da descriminalização das drogas, ocorrida em 2000, demonstram que o uso de drogas ilícitas reduziu entre usuários problemáticos de drogas e adolescentes, pelo menos desde 2003, e houve redução do número de infratores por drogas no sistema de justiça criminal. [1]
4.Além de não evitar o consumo de entorpecentes, a criminalização faz realçar a estigmatização que recai sobre usuários e dependentes.
5.A grande maioria dos casos que envolvem porte de entorpecentes deriva de prisão em flagrante, ou seja, não há um trabalho de investigação por parte da polícia para combater os esquemas de tráfico de drogas. [2]
6.Há um perfil bem nítido de pessoas selecionadas nesses casos: jovens, pobres, negros e com pouca escolaridade.
7.A pesquisa de Carlos, de 2015 [3], utilizando os limites de países como Holanda, México, Bélgica e Rússia constatou que, em São Paulo, de um universo de 1040 pessoas, 9% não iriam para a cadeia. Se subirmos o limite com base na lei espanhola de drogas, teríamos um quadro em que até 69% das pessoas não seriam incriminados por drogas.
8.A tese de doutorado recém-defendida na USP por Campos [4] sobre a lei de drogas demonstrou que a partir do trimestre julho-setembro de 2006 sempre o número de incriminados como traficantes foi maior ou igual ao de usuários incriminados. Antes da lei atual era possível observar maior número de usuários sendo incriminados do que o número de traficantes. A partir de abril-junho de 2008, 71,7% incriminados como traficantes e 28,3% incriminados como usuários; em janeiro-março de 2009, 84,5% de pessoas incriminadas como traficantes e 15,5% incriminadas como usuários; e o último ponto – outubro-dezembro de 2009 – quando 87,5% das pessoas foram incriminadas por tráfico de drogas e 12,5% incriminadas por uso de drogas.
9.A pesquisa ainda constatou que, após a lei de drogas entrar em vigor, aumentaram as chances (a probabilidade de sucesso/sobre a probabilidade de fracasso da lei de drogas) de alguém ser incriminado por tráfico em 3,95 vezes mais no ano de 2009 em relação a ser incriminado por uso tendo como referência o ano 2004. Ou seja, o fator que mais aumenta as chances de alguém ser preso por tráfico de drogas em relação ao uso de drogas não são as quantidades, mas o ano em que a lei entrou em vigor.
10.A mesma pesquisa demonstrou que 50,7% das 799 pessoas incriminadas por comércio e uso de drogas (405 pessoas) portavam até 7 gramas para todos os tipos de drogas (crack, cocaína e maconha). Quando comparado com a antiga lei de drogas, observa-se que mesmo nas faixas de pequenas quantidades (0,1 até 3 g) mais do que duplicou o número de pessoas incriminadas por tráfico de drogas (39,9%) na nova lei de drogas. O aumento também ocorre na segunda faixa, de até 7 gramas (50%), na nova lei de drogas.
Diante desse cenário, esperamos que o Supremo Tribunal Federal caminhe no sentido da promoção de novos paradigmas da política de drogas, medida necessária não só diante das razões ora apresentadas, mas também para que possamos reduzir os danos da chamada “guerra às drogas” que, no Brasil e no mundo, só fez aumentar violações de direitos.
A Suprema Corte argentina fez o mesmo em 2009 – no que se chama de “descriminalização judicial” – e agora é o momento e a vez de o Supremo reafirmar que, mais uma vez, além de guardião da Constituição Federal, pode ser um ator importante na reafirmação dos direitos humanos no país.
Crédito da foto da página inicial: Tomaz Silva/ABr
NOTAS
[1] HUGHES, Caitlin Elizabeth e STEVENS, Alex . What can we learn from the portuguese decriminalization of illicit drugs?BRIT. J. CRIMINOL. 2010, 50, 999–1022.
[2] Jesus, M. G. et. al. Prisão Provisória e Lei de Drogas: um estudo sobre os flagrantes de tráfico de drogas na cidade de São Paulo. Núcleo de Estudos da Violência, 2011.
[3] Carlos, J. Drug Policy and Incarceration in São Paulo, Brazil.Briefing Paper – InternationalDrugPolicy Consortium, 2015.
[4] Campos, M. S. Pela metade: as principais implicações da nova lei de drogas no sistema de justiça criminal. Tese apresenta ao Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 2015.
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