“Em uma economia capitalista, bens e serviços são “commodities”. “Commodities” são produzidas para a venda, para produzir lucro. A coisa importante sobre a produção de “commodities” [… ] é que não há uma relação necessária entre a utilidade de alguma coisa e seu valor econômico ou lucratividade. […]. Serviços de saúde são commodities, a saúde é um “by-product”. Desenvolvimento significa oportunidades de investimento e mercados e não corrigir décadas de pilhagem e exploração.” Richard Levins, 2009 (1).
A área da Saúde Coletiva no Brasil e na América Latina se construiu nas décadas de 1960-70, no período final do que foi nosso intenso processo de urbanização. O debate sobre as desigualdades e a injustiça social e seus impactos sobre a saúde era muito intenso (2). A Reforma Sanitária e o SUS são resultados desta luta por democratização do acesso aos serviços de saúde.
Mas nos últimos 30 anos, com o avanço da hegemonia neoliberal e da mercantilização de tudo, aquela perspectiva humanista que forjou o campo da Saúde Coletiva no Brasil, e que continua a ser transmitida para as novas gerações, talvez precise retomar algum grau de debate político e conexão com o que vai pelo mundo.
Percebe-se que as disputas que se dão nesse campo – seja na questão do Ato Médico, da estratégia de Saúde da Família e do programa Mais Médicos – são aqui apresentadas e disseminadas como disputas eminentemente ideológicas, muitas vezes como “os bons” contra “os maus”… Enquanto os determinantes mais anteriores das escolhas “ideológicas” que nos colocam sejam, na verdade, de natureza econômica, mais especificamente resultado de agendas globais fortemente influenciadas por interesses das grandes corporações internacionais.
Na década de 70, os sanitaristas discutiam isso com economistas e formuladores de políticas públicas. Numa publicação de 1978 organizada por Reinaldo Guimarães chamada “Saúde e Medicina no Brasil – contribuição a um debate”, Fiori já escrevia:
“Fora da compreensão da estrutura e dinâmica da acumulação capitalista recente, condicionada e condicionante das relações entre o Estado e a Sociedade, não é possível uma autêntica compreensão do que se passa com a Medicina e a Saúde brasileiras (p.19)”. …“É no campo da Saúde Pública que a acumulação dá-se mais claramente nas atividades meio. Pelo consumo de vacinas importadas, quimioterápicos, pesticidas etc. As decisões sobre políticas de controle e erradicação são fortemente influenciadas por tais articulações no complexo médico-industrial (3. p.25)”.
A citação colocada no início deste artigo, do prof. Richard Levins, de Harvard, tem o propósito de nos provocar a entender melhor, nacionalmente, as propostas emanadas de organizações econômicas globais (Banco Mundial, Organização das Nações Unidas) e repercutidas por organizações globais de saúde (Organização das Nações Unidas, Organização Pan-Americana da Saúde), que nos chegam como agendas para a saúde e o desenvolvimento sustentável.
Hoje, as propostas são duas e não necessariamente excludentes (embora disputando recursos do orçamento nacional):
1 – a cobertura universal por serviços de saúde, que já está na agenda global desde o início do século e cujo carro chefe é o esforço de detecção precoce e tratamento continuado de portadores de “fatores de risco” para doenças crônicas não transmissíveis (materializada aqui pela ESF e o Mais Médicos e, nos EUA, por exemplo, por cobertura universal por seguro de saúde e prescrição de medicamentos para a prevenção por não-médicos, através de protocolos padronizados) e
2 – a agenda pós-2015 de desenvolvimento sustentável, que associa saúde e desenvolvimento econômico e social e foca nos déficits de infraestrutura urbana (saneamento, mobilidade, habitação, infraestrutura de energia, logística etc.) e na superação de condicionantes da pobreza nas cidades (saúde e educação) (4-5).
O que faremos? Como podemos nos apropriar dessa discussão e fazermos as melhores escolhas possíveis dentro da nossa realidade de país economicamente periférico, exportador de produtos primários e comprador de inovação e tecnologias?
Como está a formação das novas gerações? Temos investido em situá-las no Brasil e no mundo globalizado? Como estão nossos cursos de pós-graduação? Adequados para formarem professores e pesquisadores que identifiquem as necessidades do País e as melhores formas de encaminhá-las, levando em conta nossa posição na arena da globalização econômica?
Artigo escrito em 2014 (acesse pelo site da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco, ou diretamente o PDF: ABRASCO mar 2015 Cidades Saude e Desenvolvimento Social (1) (2)) debate estas ideias. Desde lá temos assistido tentativas preocupantes de desconstrução de dois dos mais importantes patrimônios que temos para impulsionar o crescimento do País: a Petrobras e as grandes empreiteiras nacionais.
Cada empreiteira pode ser privada, mas a capacidade produtiva do setor é do País, granjeada às custas de financiamento público e muito esforço e dedicação coletivas para aprender como se faz, depois de 30 anos de estagnação econômica.
Do site do Banco Mundial esta semana copiamos aqui a seguinte nota (6):
“… It should be welcome news that the first half of 2014 (H1) data – just released from the World Bank Group’s Private Participation in Infrastructure (PPI) database, covering energy, water and sanitation and transport – shows a 23 percent increase compared to the first half of 2013, with total investments reaching US$51.2 billion. A closer look shows, however, that this growth is largely due to commitments in Latin America and the Caribbean, and more specifically in Brazil. In fact, without Brazil, total private infrastructure investment falls to $21.9 billion – 32 percent lower than the first half of 2013. During H1, Brazil dominated the investment landscape, commanding $29.2 billion, or 57 percent of the global total.
…While we need to see what the data for the second half of 2014 show, what we have to date suggests that […], in many emerging-market economies, there is much work to be done to bring projects to the market that will attract private investment and represent a good deal for the governments concerned.”
Vê-se claramente a superposição entre interesses econômicos de corporações multinacionais operando em infraestrutura (7-8) e a agenda da saúde global já em processo de publicização por revistas como o Lancet (5), uma das mais importantes publicações globais na área da Saúde.
Há cinco anos defendemos que se migre de uma perspectiva predominantemente assistencialista na área da saúde para uma de intervenção na determinação do adoecimento das populações, hoje predominantemente urbanas (9).
A perspectiva da Saúde Urbana nos permite deslocar o foco do indivíduo e dos “estilos de vida”, sobre os quais boa parcela da população não tem escolhas reais, para a proposição de “Saúde em Todas as Políticas” (10).
Investimentos em infraestrutura urbana são, sim, fundamentais para a melhoria do nível de saúde da população brasileira, como foram na Europa no século 19 e nos EUA no século 20. E como reconhecem os investidores internacionais, são uma excelente oportunidade de negócios.
A questão parece ser, realisticamente falando, se estamos nos preparando para participar da próxima agenda global, pelo menos em parte como produtores, ou apenas como consumidores destas commodities que nos estão sendo oferecidas embrulhadas no discurso do desenvolvimento. Afinal, em termos coletivos, saúde e desenvolvimento se produzem quando se produz riqueza e não quando a consumimos…
Referências
(1)Levins R., 1999. http://monthlyreview.org/2010/03/01/why-programs-fail/
(2)Spiegel, JM, Breilh J and Yass A. Globalizations and Health 2015, Why language matters: insights and challenges in applying a social determination of health approach in a North-South collaborative research program.http://www.globalizationandhealth.com/content/11/1/9
(3)Fiori JL, Introdução. Em: Guimarães R. (Org), 1978. Saúde e Medicina no Brasil, Contribuições para um Debate. GRAAL: Rio de Janeiro, RJ, p 17-27
(4)Millennium Development Goals and the post-2015 Development Agenda. United Nations Economic and Social Council. http://www.un.org/en/ecosoc/about/mdg.shtml, último acesso 13/11/2013.
(5)Talukder et al.., Lancet, 2015. Urban health in the post-2015 agenda. http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(15)60428-7/fulltext
(6)Harris C, 3/26/2015. World Bank Open Data. Newest private participation in infrastructure update shows growth and challengeshttp://blogs.worldbank.org/opendata/newest-private-participation-infrastructure-update-shows-growth-and-challenges
(7)Sustainable development. Post-2015 intergovernmental negotiations (declaration section), 17-20 Feb, 2015. https://sustainabledevelopment.un.org/post2015/declaration
(8)Montmollin P. Business insight in Latin America 2015. SURVEY 2015: Private sector turns attention to LatAm’s water crisis. http://www.bnamericas.com/news/waterandwaste/survey-2015-private-sector-turns-attention-to-latams-water-crisis1
(9)Azambuja MI, Achutti AA, Reis RA e cols, 2011. Saúde Urbana, Ambiente e Desigualdades. RBMFC 6(19): 110-115. http://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/151/311
(10)Monteiro de Andrade O, Pellegrini Filho A e cols. Lancet 2015. Social determinants of health, universal health coverage, and sustainable development: case studies from Latin American countries. 385(9975):1343–1351. http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(14)61494-X/fulltext
Crédito da foto da página inicial: Valter Campanato/ABr
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