Publicado no blog Economia da Longevidade
Desde os anos 1980, o mundo virou um grande laboratório de reformas nos sistemas de previdência social. Quase quatro décadas depois, quem se debruçou sobre essas experiências chegou a algumas constatações: a privatização dos sistemas públicos foi danosa para os países e para os trabalhadores, como no caso de Chile e México; nos países onde foram adotados sistemas mistos, com opção para as pessoas escolherem entre poupar no setor público por repartição ou em contas individuais no setor privado, houve arrependimento em massa entre aqueles que optaram pelo segundo. Na Argentina, dois milhões de trabalhadores retornaram ao sistema público assim que a lei permitiu o arrependimento, em 2007. Na Hungria, foi pior. Em 2010, quando o governo reabriu a previdência pública, 97% dos trabalhadores trataram de abandonar a previdência privada imediatamente. Na Polônia, em 2013, o percentual foi um pouco menor, mesmo assim, alto, 85% preferiram voltar ao setor público.
O motivo do arrependimento com a previdência privada foi o baixo valor das aposentadorias, uma vez que a taxa de administração cobrada pelos bancos e empresas de previdência nestes países mordia boa parte da rentabilidade dos recursos poupados. Em nenhum outro país, no entanto, o laboratório de experiências com os recursos da população foi mais profícuo do que o Chile. O único país a manter seu sistema totalmente privado, isto é quem entra no mercado de trabalho é obrigado por lei a contribuir para uma previdência privada, sem a opção de um sistema contributivo estatal. Depois de três décadas e meia, as manifestações de rua contra o sistema privado têm atraído centenas de milhares de chilenos cobrando uma desprivatização.
No livro “Pensiones a la chilena, la experiencia internacional y el camino a la desprivatización” (sem edição em português), o economista Andrés Solimano faz uma análise comparativa sobre os sistemas do Chile e dos países citados acima. “O sistema de previdência chileno perdeu a legitimidade democrática”, escreveu. Nesta entrevista, este doutor em Economia pelo Massachusset Institut of Technology, ex-diretor de países do Banco Mundial e ex-diretor adjunto do Banco Interamericano de Desenvolvimento, entre outras funções em organismos multilaterais, empresta sua experiência para avaliar as consequências socioeconômicas da privatização da previdência no Chile.
Em sua opinião, essas experiências dos anos 1980 e 1990 deixaram um aviso: “Previdência é um contrato social e não um negócio financeiro”. O Chile hoje amarga a posição de país com a maior desigualdade social entre os 35 integrantes da OCDE. O Pnud acaba de divulgar um relatório e recomendar uma mudança “o mais urgente” na seguridade social do país. As aposentadorias do setor privatizado, em média, estão abaixo do salário mínimo. Uma legião de aposentados vê sua poupança acabar antes de morrer e precisa ser aceita no Pilar Solidário, no entanto, se têm bens, como casa própria, não podem ser atendidos pela assistência social. O resultado é que mesmo esse pilar (chamado de pilar zero) cobre apenas 60% dos que são vulneráveis. Enquanto isso, os militares recebem, em média, quatro vezes mais que os aposentados pelo sistema privado. A seguir, Solimano explica melhor como a previdência privada foi uma ótima experiência para um pequeno grupo de empresas globais e péssima para a economia, os trabalhadores e a sociedade chilena.
O livro começa com um resgate do significado da previdência na sociedade contemporânea, um pouco histórico, um pouco conceitual. Acredita que o debate sobre o tema, no mundo, fez a sociedade perder o “sentido” da existência de um sistema de seguridade social?
Efetivamente, nas discussões sobre os sistemas de previdência se sobrevaloriza os temas financeiros e fiscais, que sem dúvida são importantes, em detrimento de se visualizar a previdência social como um direito cidadão e um mecanismo de proteção das pessoas em face à diminuição de capacidade de gerar renda na velhice, enfrentar as contingências de saúde e outras que requerem soluções ajudadas pelo Estado. Se pensa que privatizando a previdência social se libera o Estado de uma “carga financeira”, o que não é a realidade.
Qual o balanço desses 36 anos de privatização da previdência social no Chile?
O balanço dos 36 anos com a privatização do sistema de previdência no Chile não é positivo. Como desenvolvo no livro com mais detalhes, o sistema não foi capaz de entregar, na média, boas pensões à população. É um sistema com muitas contradições. As pensões, em média, pagas pelo sistema de AFPs (Administradoras de Fundos de Pensão) são inferiores ao salário mínimo. Existem substanciais diferenças de gênero. As diferenças de pensões (em média) que recebem as forças armadas e os pensionistas do sistema de AFP são de cerca de 400%. Por outra parte o sistema de capitalização criou um fluxo muito alto para o mercado de capitais que é usado para financiar conglomerados comerciais ou simplesmente são enviados para fora do Chile. Além disso, o retorno médio que recebem as administradoras de fundos de previdência privada é muito elevado (apesar de pagar pensões baixas), sendo superior a 25% anual. A contradição é que, por um lado, o sistema é um grande negócio para aqueles que o administram, mas ao mesmo tempo paga pensões baixas. Chama a atenção que depois de 27 anos de retorno à democracia no Chile nenhum governo civil tenha procurado fazer reformas reais do atual sistema de pensões privatizadas. Quando ocorrem ataques aos direitos sociais pode se levar décadas para retificar esses danos.
Quais as possibilidades reais, em termos políticos, de uma desprivatização?
O sistema de AFPs está muito questionado pela população chilena. Ocorreram manifestações grandes em todo o país pedindo uma mudança no sistema. Estas mobilizações foram lideradas pelo movimento NO+AFP. Por outro lado, a aliança das administradoras privadas é muito poderosa e influente no sistema político chileno. Além disso, as AFPs têm uma grande influência sobre os meios de comunicação pelo grande volume de publicidade nos veículos. Ex-ministros estão na direção das AFPs e estas organizações têm muita entrada nos poderes Executivo e Legislativo. Tudo isso torna muito difícil uma mudança real em curto prazo para uma desprivatização do sistema. Mas não sabemos ao certo o que pode ser a dinâmica de uma transformação do sistema de pensões e pode haver surpresas.
Um dos objetivos da privatização foi o desenvolvimento do mercado de capitais. Como avalia esse objetivo?
É um mercado no qual os recursos de previdência vão para empresas grandes e conglomerados econômicos, uma parte dos recursos dos trabalhadores se exporta, vai para fora do Chile, como falei. As AFPs podem comprar ações, bônus e outros títulos da dívida. Esses instrumentos não são emitidos por pequenas ou médias empresas, assim estas ficam de fora do financiamento pelas AFPs. Por outro lado, os recursos não são usados para financiar investimentos em hospitais, escolas públicas, atividades com impacto social. Os investimentos das AFPs não estão sujeitos a critérios de responsabilidade social corporativa e de fato financiam empresas que não respeitam os direitos trabalhistas ou o meio ambiente. É um mercado de capitais muito peculiar, desregulamentado. As AFPs têm um monopólio por lei sobre 10 milhões de contas individuais [o Chile tem 17 milhões de habitantes] que são divididos por seis companhias privadas com fins lucrativos.
Das duas recomendações que faz no livro, qual é a mais difícil hoje: um sistema tributário mais progressivo ou a desprivatização do sistema de previdência?
Ambos são muito difíceis porque tocam nos interesses das elites econômicas e do grande capital, indivíduos e organizações com grande influência midiática e política. No entanto, a desprivatização do sistema de previdência teria um amplo apoio social. Ainda que, mesmo assim, não é fácil fazê-la.
No livro, é destacada a lógica perversa de a poupança do trabalhador para a velhice ser usada contra ele próprio. Como se dá isso do ponto de vista econômico?
O trabalhador que poupa no sistema privado não tem nenhuma influência em como serão investidos seus recursos de previdência (embora ele possa escolher entre cinco fundos de várias combinações de rentabilidade e risco). Os trabalhadores não nomeiam diretores das AFPs, nem influenciam em suas políticas corporativas. Um paradoxo é que os trabalhadores devem tomar empréstimos para o consumo, crédito para financiar a educação de seus filhos ou crédito para habitação que são mais caros. Esses créditos são concedidos por instituições que são financiados pelos próprios fundos de pensão. Eles são obrigados por lei a transferir estes recursos a AFP, que emprestam aos bancos que são os que fazem bons negócios com clientes (trabalhadores, empregados) e que são os proprietários final dos recursos poupados. É uma situação bastante absurda.
Como avalia a reforma de 2008 que criou o Pilar Solidário e significou a volta do Estado ao sistema previdenciário chileno? E por que um governo de esquerda não tentou uma contrareforma mais radical?
A reforma da previdência de 2008 (com o primeiro governo da presidenta Michelle Bachelet) não tocou no sistema das AFPs. Não introduziu um pilar público que competisse com as administradoras privadas, não criou uma AFP estatal. De fato, a rentabilidade das administradoras privadas subiu um pouco depois da reforma. O que fez esta reforma foi criar o pilar solidário que paga benefícios mínimos [aqueles que não conseguiram se aposentar pelas regras das AFPs, com 25 anos de contribuição]. Tudo isso era necessário fazer, mas se financiou com receitas gerais da União. Não com um imposto, por exemplo, sobre os ganhos altos anormais das AFPs. Nem as “reformas de 2008” obrigaram os empregadores a contribuir para a aposentadoria dos seus trabalhadores e empregados. Até hoje a taxa de contribuição das empresas é zero, ainda que exista um projeto de lei do governo para elevá-lo gradualmente a até 5%. Esta cotização zero dos empregadores é um caso único no mundo e fez com que o valor acumulado nas contas individuais seja muito baixo para a maioria dos participantes que recebem, depois, baixas aposentadorias em parte porque durante 36 anos seus empregadores foram liberados dessa contribuição.
Por que os militares e os setores de defesa conseguem ainda manter seus privilégios previdenciários no Chile?
Quando se privatizou o sistema de previdência em 1981, com Pinochet, o general decidiu que as Forças Armadas não entrariam no novo sistema privado de previdência e seguiram nas caixas de previdência da Defesa Nacional. O Estado chileno financia cerca de 90% do gasto em pensões da CAPREDENA e DIPRECA (as caixas da defesa nacional). Isso não se alterou em quase três décadas de transição para a democracia. Talvez seja até parte dos acordos secretos para a transição democrática do fim da década de 1980 manter estes privilégios de previdência para o estamento militar. No livro, se mostra que essas aposentadorias (da defesa nacional) são muito superiores à média dos benefícios pagos pelas AFPs para os aposentados do setor privado. Em todo caso, creio que se deve nivelar por cima e não por baixo, como seria o caso, que alguns propõem no Chile, de levar as instituições de defesa nacional ao sistema de AFP.
Qual país poderia citar como um modelo mais adequado de sistema de previdência diante do envelhecimento populacional?
Há muito o que aprender com os sistema de previdência do Canadá, Estados Unidos, países escandinavos e também outros sistemas na América Latina e no mundo em desenvolvimento, ainda que todos enfrentem desafios demográficos, fiscais e de produtividade. A chave, a meu juízo, é que exista uma lógica de solidariedade intergeracional e intrageracional, que empregadores e empregados cotizem, que os custos de administração do sistema sejam baixos e que os Estados tenham uma responsabilidade importante em garantir pensões para velhices adequadas. A previdência é um contrato social e não um negócio financeiro.
A dinâmica demográfica é sempre a culpada pela suposta insustentabilidade dos sistemas de previdência?
O envelhecimento da população e o menor crescimento da população afetam tanto os sistemas de repartição (baixa na proporção de ativos contribuindo em relação aos aposentados) como o sistemas de capitalização individual (como os sistemas privados). Nestes últimos, a poupança acumulada na idade laboral deve ser distribuída em uma maior número de anos de velhice e, portanto, o valor da pensão diminui. A capitalização não é imune às tendências demográficas, como se faz crer.
O Brasil está discutindo uma nova reforma da previdência. O que poderia sugerir como preocupações principais ou pontos que os legisladores e os trabalhadores deveriam levar em conta?
É importante que desejemos que não se “compre” de forma acrítica as ideias de que com um sistema privado de Previdência Social se melhora automaticamente as finanças públicas e se eleva o valor das aposentadorias. Pelo contrário, a experiência das últimas duas a três décadas com sistemas privatizados de pensões em Chile, Argentina, Polônia, Hungria e outros países mostra que a transição a um sistema privado de aposentadoria impõe uma carga ao fisco já que se vão, inicialmente, os contribuintes para o sistema privado mas tem que uma parcela que fica no sistema público e que tem que pagar suas aposentadorias. Também é importante considerar que a privatização do sistema de previdência e as contas individuais pagam altos volumes de recursos financeiros a poucas empresas concentrando mais ainda a propriedade e fortalecendo os conglomerados econômicos.
Por isso muitos países desprivatizaram?
Sim. Deve ver o custo em vendas, publicidade se operaria um sistema privado. Deve estar consciente que Argentina, Polônia, Hungria, Bolívia e outros desprivatizaram (entre 2008 e 2015) seus sistemas de previdência, dando às pessoas a opção de retornar ao sistema público, modernizado, e a grande maioria fez isso. Voltou para o sistema público. Existe consenso que o experimento com um sistema privado de previdência não eleva o valor das aposentadorias, cria custos fiscais altos para o Estado e custos de administração consideráveis. A desprivatização do sistema de previdência não trouxe, nos países mencionados, instabilidade financeira, ao contrário, melhorou as finanças do Estado e as pessoas se sentiram aliviadas. O subsídio fiscal do Estado para a previdência privada era muito alto. Oxalá se estudem no Brasil essas experiências, incluindo o caso chileno, que é o de maior duração, mas com resultados pouco auspiciosos no essencial de um sistema de Previdência Social: boa aposentadoria, cobertura adequada, redistribuição de renda e baixos custos de administração. A privatização do sistema foi um grande negócio para um pequeno grupo mas pagando pobres aposentadorias para a maioria da população.
Pensiones a la chilena – la experiência internacional y el camino a la desprivatización
Andrés Solimano
Ed. Catalonia www.catalonia.cl
148 pp.
2017
Crédito da foto da página inicial: Telesur/El Mostrador
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