Como sabemos, desde seu surgimento, o liberalismo econômico sempre foi orientado às liberdades dos grandes donos da riqueza, do dinheiro e do poder, muito distante do liberalismo social e jurídico. Basta lembrar que o liberalismo econômico floresceu com base na exploração do trabalho escravo das colônias dos países europeus. O escravo era o principal ativo da base social do sistema, na transição entre o feudalismo para o capitalismo.
O tráfico negreiro era um grande negócio que permeava toda a sociedade europeia. O famoso iluminista francês e advogado das liberdades individuais Voltaire, por exemplo, possuía papeis e ações de companhias do tráfico negreiro. Ou seja, investia e lucrava com exploração direta dos seres humanos. Óbvio, um homem do seu tempo, mas isto mostra a força e a covardia do modo pelo qual surgiu o capitalismo e o seu liberalismo econômico, à custa de muito suor e sangue dos escravos.
Por princípio e prática, a existência do mercado é fruto direto da intervenção do Estado na sociedade. As mercadorias fundadoras do mercado não são produzidas por ele. A terra, o trabalho e a moeda são intrinsecamente constituídos pela força do Estado, no processo conhecido como Moinho Satânico, moendo carne humana para criação da sociedade de mercado conhecida como capitalismo. Logo, nenhum mercado é livre por princípio, essência e ou prática.
(a) A terra é um bem dado pela natureza, sendo insumo primário para produção de alimentos que garantem a vida do ser humano no planeta e, portanto, não produzida ou pertencente ao mercado em sua essência;
(b) Os seres humanos não são meros objetos cujos preços possam ser exclusivamente determinados pelo mercado, visto que sua existência e compreensão precedem e ultrapassam qualquer noção mercadológica da vida;
(c) E, por último, a moeda é bem público, historicamente criada e gerenciada pelo Estado, sendo este o grande garantidor da legitimidade e valor do dinheiro na sociedade. Embora objeto de enriquecimento privado, a criação, destruição, gestão, volume, fluxo e regramento da moeda são de responsabilidade do Estado através da figura do Banco Central.
A própria lógica de acumulação do sistema (escravo não tem renda e por isso não consome) e os fortes impactos de percurso, com as duas grandes guerras mundiais, fizeram o sistema capitalista ceder um pouco à humanidade. O seu maior concorrente, a URSS mostrou que era preciso dar um fim às atrocidades contra o seu principal fator gerador da riqueza, o trabalhador. De tal modo que as benesses do sistema deveriam ser distribuídas, também, à maioria da população, o mercado livre não poderia ficar mais restrito apenas a um pequeno grupo de ricaços da sociedade. Em função disto, o mercado teve que deixar de ser um pouco menos livre para os ricos, e se tornar um mercado um pouco mais regulado para garantir acesso à maioria da população.
O Estado de Bem-Estar Social, Welfare State, criado após a Segunda Guerra Mundial foi o produto disto, o básico da cesta de consumo de toda a sociedade foi ofertado com máximo de qualidade para todos. A educação básica e média, saúde, segurança, casa própria e transporte foram regulados diretamente pelo Estado para garantir o acesso a todos, independentemente da renda, classe social, cor e sexo, porque o mercado livre não produz isto automaticamente.
Com a realização do nivelamento econômico e social básico para maioria da população, alguns mercados puderam ser, de fato, livres, pois foi construído um mínimo de condições igualitárias para acesso aos seus bens. Dados certos critérios e regulação, tais mercados exercem, sim, uma liberdade real de acesso para uma parte considerável da população. Um dos exemplos é o mercado de crédito. O spread[1] do sistema financeiro desses países, os desenvolvidos, é extremamente baixo, o que facilita a oferta de crédito à população para consumo ou investimento.
O que não ocorre quando olhamos para o Brasil, onde o spread é quase um assalto à mão armada. O spread brasileiro é 4 vezes e meia a média dos spreads praticados no mundo, em 2019. O Brasil só perde para o país africano de Madagascar que, em 2019, tinha um spread de 36% contra 32% do Brasil.
Isto decorre de o perfil do sistema financeiro privado brasileiro ser altamente subdesenvolvido. Os grandes bancos lucram com o parasitismo das pessoas físicas e, principalmente, daqueles pertencentes à classe média e pobre do país. Muito diferente dos seus congêneres nos países desenvolvidos, os grandes bancos privados daqui não possuem o espírito inovador, animal spirit, e comportamento avançado de investir a médio e longo prazo em projetos de fronteira tecnológica. Os grandes bancos privados preferem parasitar pequenas rendas em altíssima escala a investir em grandes projetos inovadores. Relegam isto ao Estado, mas sabotam quando o agente estatal atinge conquistas (ver https://brasildebate.com.br/os-bancos-publicos-no-enfrentamento-aos-impactos-da-covid-19/).
Por isto, quando surge alguma inovação que possa, minimamente, beneficiar a grande massa trabalhadora no sistema financeiro, o lobby dos grandes donos de bancos atua fortemente junto aos seus congressistas patrocinados (deputados e senadores) para parasitá-lo. O caso mais recente é o Pix.
De acordo com Banco Central do Brasil (Bacen), “Pix é o pagamento instantâneo brasileiro. O meio de pagamento criado pelo Banco Central (BC) em que os recursos são transferidos entre contas em poucos segundos, a qualquer hora ou dia. É prático, rápido e seguro. O Pix pode ser realizado a partir de uma conta corrente, conta poupança ou conta de pagamento pré-paga” (https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/pix). Em que pessoas físicas, microempreendedores individuais (MEIs) e empresários individuais não pagam por suas transações.
O objetivo desse novo meio de pagamento é fomentar o nível de atividade econômica na base da sociedade, uma vez que os custos tecnológicos são relativamente desprezíveis para o seu ofertamento. Ou seja, os ganhos com a movimentação econômica mais do que compensam os custos na oferta do serviço gratuito.
O recém anúncio do Bacen para novas modalidades de serviços do PIX com cobranças e limites é um prenúncio para futuras cobranças em toda estrutura desse meio de pagamento. Sem mencionar o absurdo da própria medida, dado o perfil extremamente usurário do sistema financeiro nacional. Segundo o Bacen, os serviços do PIX Saque e o PIX Troco terão limites e taxas de cobrança. Há uma consulta pública sobre os limites desses serviços que vale a participação de todos no site da instituição: https://www3.bcb.gov.br/audpub/DetalharAudienciaPage?11
De acordo com a PNAD contínua, a renda média mensal do trabalhador brasileiro é de R$ 2.520 (https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?=&t=destaques), e mais da metade da população, ou seja, mais de 100 milhões de brasileiros receberam menos de um salário mínimo, R$ 1.045,00, em 2020.
É uma renda extremamente baixa para qualquer volume de operação financeira. Com esta renda, o saque tende a ser único. Mesmo assim, o Bacen pretende intervir para facilitar a cobrança pelas instituições do mercado. Certo de que qualquer ato do Estado, tanto em regular quanto desregulamentar são tipos diferentes de intervenção, o Bacen poderia manter sua postura desregulamentadora das operações do PIX, garantindo, assim como garante outras mercadorias não produzidas pelo mercado, a gratuidade dos serviços sem limites.
Diante do escandaloso spread do sistema financeiro nacional e da alta restrição orçamentária da maioria das famílias e microempresas brasileiras, a ampliação das modalidades dos serviços do PIX deveria manter-se de forma gratuita e sem limites. Mesmo porque o baixo nível de renda é um condicionante estrutural de uso do serviço. O reduzidíssimo salário das famílias não produz saques e operações financeiras significativas.
Todavia, para possíveis melhorias nos ganhos de renda desse enorme contingente populacional de baixa renda, tal taxação penaliza o pouco que já tem, esterilizando qualquer ganho adicional futuro.
Pela primeira vez, deixa o mercado ser livre!
Crédito da foto da página inicial: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
[1] O spread é a diferença entre o custo de capitação do crédito feito pelo banco junto ao sistema financeiro, normalmente no Mercado Aberto de capitais, e o retorno desse mesmo crédito disponibilizado (emprestado) ao público.
Comments