A tradução do livro de Thomas Piketty (2013) para o inglês teve um impacto importante na mídia e academia econômica dos Estados Unidos da América (EUA). Apesar de os economistas já conhecerem o trabalho de Atkinson, Piketty e Saez (2011) sobre renda e riqueza há algum tempo, o estilo, amplitude e propostas políticas do livro de Piketty chamaram a atenção de todos para o risco do aumento da desigualdade de renda, especialmente nos EUA e outros países de língua inglesa.
O livro de Piketty já foi objeto de inúmeras críticas e comentários na mídia especializada, das quais cabe destacar Galbraith (2014), Krugman (2014) e Summers (2014). Para minha análise mais técnica das proposições teóricas de Piketty, sob uma perspectiva heterodoxa, ver Barbosa-Filho Note-on-Piketty (2014).
Infelizmente, o Brasil não consta dentre os países analisados por Piketty por que nós ainda não possuímos uma base de dados fiscais pública sobre distribuição de renda e riqueza. Atualmente, as análises sobre desigualdade e pobreza no Brasil tomam como referência a Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (PNAD), que, por sua vez, se baseia num levantamento amostral da renda domiciliar e outras variáveis, com periodicidade anual.
Os dados de renda da PNAD se concentram basicamente na renda do trabalho, com pouca ou nenhuma informação sobre a renda do capital ou a riqueza das famílias brasileiras.
Em paralelo à PNAD, o IBGE também realiza a Pesquisa Nacional de Orçamentos Familiares (POF), na qual se coletam dados sobre as fontes e usos de recursos por parte das famílias brasileiras.
Os dados de fontes de renda da POF são classificados por faixa de renda, em termos do salário mínimo, e constituem a melhor aproximação hoje disponível sobre a composição da renda das famílias brasileiras.
A tabela 1 abaixo apresenta um resumo dos dados da última POF, o que, por sua vez, confirma algumas percepções gerais da população de da imprensa, bem como revela alguns padrões bem específicos ao Brasil. Por exemplo:
• O rendimento de empregados representa um % maior da renda das famílias de renda média e de renda alta do que das famílias de renda baixa. • No mesmo sentido, o rendimento de empregador chega a 13% do rendimento total das famílias mais ricas, e praticamente zero das famílias mais pobres. • Em contraste, o rendimento do trabalho por conta própria é uma fonte de rendimento relativamente mais importante para as famílias mais pobres. • A parcela do INSS na renda das famílias é maior para os mais pobres do que para os mais ricos. • No sentido contrário, a previdência pública é uma importante fonte de renda para os mais ricos, atingindo 10% do rendimento total de tal grupo. • E os programas sociais federais representam 6% da renda dos mais pobres e zero da renda dos mais ricos.
Os dados da POF representam o que mais se aproxima da estratificação da distribuição da renda do trabalho, capital e transferências nos moldes analisados por Piketty, mas ainda com muito pouco detalhamento sobre a renda do capital e nenhuma informação da distribuição de riqueza no Brasil.
Para conhecer melhor a estrutura da distribuição de renda e riqueza do Brasil, é necessário complementar a análise dos dados da PNAD e da POF com um estudo da distribuição de renda e patrimônio com base em dados fiscais, isto é, com base nos dados do IRPF.
Até o momento, tal iniciativa não foi realizada devido a dois obstáculos: um financeiro e outro orçamentário.
O obstáculo financeiro vem do contingenciamento recorrente dos recursos operacionais da Secretaria da Receita Federal do Brasil (SRFB), que acaba por inviabilizar o desenvolvimento de estudos e implementação de novos processos. Felizmente, este obstáculo pode ser superado com uma realocação de recursos que privilegie o planejamento de longo prazo, ao invés de resultados de curto prazo.
O obstáculo legal vem da interpretação de que qualquer divulgação mais desagregada dos dados do IRPF implicaria quebra de sigilo fiscal. O fato de vários países avançados já divulgarem dados de distribuição de renda e riqueza com base em dados fiscais, por si só, já indica que tal tipo de estudo não é incompatível com o sigilo fiscal.
Na verdade, não existe empecilho legal a replicar o estudo de Piketty para o Brasil, desde que a apresentação dos dados seja feita num formato que preserve o sigilo fiscal e, ao mesmo tempo, detalhe a distribuição de renda e riqueza por extratos da população de contribuintes do IRPF.
É perfeitamente possível que a SRFB elabore um relatório anual de distribuição de renda e riqueza, no qual todos os dados da declaração anual de IRPF sejam apresentados por milésimos da população de contribuintes.
Mais especificamente, no ano de 2014 houve aproximadamente 26 milhões de declarações de IRPF. Cada 0,1% do total de declarações corresponde, portanto, a 26 mil contribuintes. Um relatório que apresentasse os dados do IRPF por milésimo da população de contribuintes conteria 26 mil pessoas em cada “célula”, o que, por si só, preserva o sigilo fiscal de cada indivíduo.
Com base na visão acima, o Deputado Claudio Puty (PT/PA) apresentou uma proposta de lei para criação do Relatório sobre a Distribuição Pessoal da Renda e da Riqueza da População Brasileira com periodicidade anual. Veja aqui a íntegra da proposta e acompanhe sua tramitação na página da Câmara dos Deputados.
Caso aprovado, o PL de iniciativa do Deputado Puty aumentará, em muito, o conhecimento da sociedade brasileira sobre si mesma, o que, por sua vez, auxiliará o Poder Executivo e o Congresso na construção e acompanhamento da política econômica, sobretudo da tributação pessoal e das transferências de renda às famílias.
Independentemente de orientação ideológica ou filiação partidária, todos no Brasil têm a ganhar com o aumento da transparência e do conhecimento sobre a distribuição de renda e riqueza em nosso País.
Nos últimos anos, o Brasil foi uma das poucas grandes economias do mundo em que a desigualdade da distribuição de renda do trabalho caiu. Já está na hora de ampliarmos nossos estudos sobre o tema para a renda do capital e a riqueza, e isso em nada compromete o sigilo fiscal dos contribuintes.
Referências:
Atkinson, A.B., Piketty, T.andSaez, E. (2011). “Top Incomes in the Long Run of History.” Journal of Economic Literature, 49(1): 3-71.
Barbosa-Filho, N.B. (2014), Elasticity of substitution and social conflict: a structuralist note on Piketty’sCapital in the 21st Century, mimeo.
Galbraith, J.K. (2014). “Kapital for the 21st Century?”, Dissent Magazine, spring. Disponível em:http://www.dissentmagazine.org/article/kapital-for-the-twenty-first-century
Krugman, P. (2014). Why We’re in a New Gilded Age, The New York Review of Books, May.Disponível em: http://www.nybooks.com/articles/archives/2014/may/08/thomas-piketty-new-gilded-age/.
Piketty, T. (2013).Le Capital au XXIe siècle.Paris: Éditions du Seuil.
Summers, L. (2014).“The Inequality Puzzle.”Democracy, Issue #33, Summer 2014. Disponível em: http://www.democracyjournal.org/33/the-inequality-puzzle.php?
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