Tudo o que conduziu ao impeachment de 2016 legou níveis de degradação inacreditáveis em todas as áreas da vida nacional; sendo a prisão de Lula e a eleição de Bolsonaro a sua demonstração mais dramática. O impacto sobre a educação em geral e a vida universitária em particular merece reflexão mais detida
Paulo Martins é um erudito. Não há outra designação para quem transita com tamanha familiaridade pelos mundos desabados de Cícero, Virgílio, Ovídio, Horácio, Luciano, Quintiliano, Augusto, Severo. Por coincidência e destino, hoje ele ocupa a função de Diretor no principal centro de ciências humanas e humanidades do país, que segue sendo a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). E, desde essa honrosa e simbolicamente pesada posição, ele vem de apresentar uma imensa, urgente e necessária provocação sobre o destino da universidade brasileira em seu artigo “Universidade para quê?” .
A pergunta avançada no título não é nada trivial e demanda reações cuidadas, moderadas, respeitosas e sutis. O corpo da universidade está sensível e a sua compleição mental, debilitada. Vive-se, intra e extramuros, dias terríveis. Quase de desespero. E nada indica céu azul, no curto ou médio prazo, aqui nem do outro lado da montanha mágica.
Vem de muito o questionamento sobre a utilidade última da universidade, pública ou privada, no Brasil e no mundo. Mas, ultimamente, passou-se a questionar a própria retroalimentação da universidade enquanto edifício moral, cultural, racional multissecular que, inquestionavelmente, racionalizou e civilizou o fluxo da vida no Ocidente e além e, no Brasil, possibilitou aos brasileiros sermos o que somos: uma sociedade intelectual e culturalmente das mais complexas, diversas e prolíferas do mundo.
Ou seja, tem muito que a universidade perdeu o monopólio do conhecimento e o imperativo da transferência de saber. Mas, nos últimos tempos, a erosão do reconhecimento da própria função social da universidade vem sendo acelerada implacavelmente. Nada disso é, portanto, trivial nem banal.
O primeiro suposto para um possível início de diálogo com as preocupações de Paulo Martins precisa, assim, reconhecer, de saída, que o que se entende por universidade no Brasil, com raríssimas e distantes exceções, deixou de existir tem uns quinze, vinte anos. O reservatório de saber, conhecimento e cultura que ela historicamente representou, foi rebaixado a níveis de banalização e vulgaridade jamais imaginados ou suportáveis, mesmo pelos seus mais violentos e históricos detratores de plantão.
O seu papel social e moral na condução da redução de aporias sociais perdeu, quase que completamente, a sua operacionalidade diante do ingresso súbito, acrítico e incontornável da sociedade brasileira, como um todo, na fluidez da era da hiperinformação acelerada pela emergência da Quarta Revolução Industrial em franca implementação nos últimos dez anos.
A sua condição de elevador social, notadamente aos infatigáveis desvalidos da terra, ganhou dimensões quase contrárias aos propósitos iniciais de soerguimento econômico, cultural e moral da sociedade. Ninguém ou quase ninguém verdadeiramente informado sobre o mercado de trabalho brasileiro recorre cegamente à universidade para somente dela aquinhoar equipamentos para o melhoramento pessoal socio-econômico-cultural.
Qualquer brasileiro ou estrangeiro que desembarca nos aeroportos das principais capitais do país e solicita serviços de locomoção pode, sincera e amargamente, notar que a massa de trabalhadores uberistas e afins corresponde a possivelmente a casta de motoristas de aplicativos mais bem formada do planeta. Quase todos com diplomação superior e, muita vez, provenientes de formações complexas, sofisticadas e longas como Letras, Filosofia, Astrofísica, Engenharias e afins.
Virou, por exemplo, impossível trocar de um para outro transporte de uber no Rio de Janeiro sem ter como chofer um engenheiro de minas, engenheiro de petróleo ou engenheiro químico. Da mesma forma, em São Paulo, uberistas são, em geral e em verdade, historiadores, psicólogos, administradores de empresas ou bacharéis em direito, muita vez, egressos da própria USP – a constante universidade mais importante e relevante do país.
No mesmo diapasão, a se fiar pelos estudos do economista Guilherme Hirata da consultoria educacional IDados, 41% dos portadores de diploma de ensino superior no Brasil, ou seja, aproximadamente 8,5 milhões de brasileiros, exercem ocupações aquém daquilo ao que se qualificaram.
Se isso não bastasse, os números se movem de 25 a 30% para indicar o percentual de mestres e doutores desempregados. Sem contar os subempregados. E é preciso sempre se lembrar dos desalentados, desolados e desesperados. Aqueles que, seriamente, vivem a solidão dos escolarizados ou o desespero dos sobre-educados.
Isto tudo movimenta o moinho da indagação de Paulo Martins, mesmo se sabendo que, para além da sua utilidade com sinalizador para empregabilidade, a educação universitária possui – ou deveria possuir –, como sempre acentuou o saudoso economista João Sayad, valor em si.
A crise da universidade brasileira, acentue-se então, é uma verdade inconveniente desde o final do último milênio. Com o ingresso no século XXI e o avanço desenfreado de sua expansão, em formatos públicos e privados, por todas as regiões do país, o que era uma crise remediável ganhou dimensões francamente insolúveis.
Ninguém, com o mínimo de sensibilidade ao encontro dos impérios de desigualdades especializados pelas múltiplas regiões e sub-regiões do Brasil, pode condenar a expansão universitária dos últimos quinze, vinte anos. Mas, como bem se anotou Rodrigo de Oliveira Almeida, na edição 320, de outubro de 2022, da revista Fapesp, “a expansão universitária teve impactos tangíveis nas realidades locais, mas ainda enfrentam obstáculos para se consolidar.”
Esses obstáculos, a partir do conjunto de turbulências morais, culturais, intelectuais, econômicas e sociais dos últimos dez anos – leia-se, dos iniciais 20 centavos das noites de junho de 2013 –,foram ganhando ares de calamidade pública. E, como sob tempestade perfeita, começaram a atormentar o cotidiano de gestores, professores, funcionários, alunos e familiares.
Ninguém consegue ainda mensurar o tamanho do sinistro educacional desde o ministro Cid Gomes até o ministro Victor Godoy Veiga, vem de entregar as chaves do Ministério ao governador Camilo Santana.
Do antigo também governador do estado do Ceará e irmão do eterno presidenciável Ciro Gomes, dizia-se, boca pequena, por Brasília e alhures, que se tratava do primeiro Ministro da Educação explicitamente desprovido de educação desde o retorno à democracia em 1985-1988. E, note-se que, Cid Gomes advinha da gestão suprema do estado brasileiro notabilizado pelos seus avanços na área de educação. Era, portanto, de se supor que algo sobre o assunto soubesse.
A sua gestão foi breve, brevíssima mesmo. Mas, talvez, seja mister de se lembrar e meditar, sobre as conveniências políticas em ministério tão relevante, que a razão principal de sua queda foi a sua “petulância” em afrontar, pública e frontalmente, o então todo poderoso presidente da Câmara dos Deputados, o Senhor Eduardo Cunha.
Tudo isso para dizer que a gestão geral da educação brasileira, desde o início de 2015, foi tragada pela crise política que tomou conta de praticamente tudo. Conseguintemente, desde então que a universidade pública, especialmente, passou a cultivar namoros prolongados e intensos como a sua própria irrelevância.
Não simplesmente pelo represamento de recursos, corte de verbas, evasão em massa, redução progressiva de interesse e de ingresso ou incontestável rebaixamento do nível dos seus profissionais. Mas, sobretudo, pela internalização das contradições, tormentos, brutalizações e destemperos políticos nacionais no ambiente universitário.
O lodaçal e a fedentina que tudo isso causou e ainda causa vão demorar gerações para serem superados.
Poucos países do mundo possuem o privilégio, por exemplo, da disponibilidade de um intelectual da estatura de um Renato Janine Ribeiro para ocupar e gerir burocracias pesadas e complexas de ministérios – no caso específico, do Ministério da Educação. Pois nem com Renato Janine Ribeiro, Ministro da Educação fugaz em 2015, a sangria na área deu sinais de estancar.
A inquestionável correção e discrição do competente e esforçado Rossieli Soares, Ministro da Educação sob a presidência de Michel Temer, foi estrategicamente decisiva na tentativa de contenção de sangrias. Mas a embarcação da Educação seguia e seguiu em queda livre.
Tudo que conduziu ao impeachment de 2016 legou níveis de degradação inacreditáveis em todas as áreas da vida nacional; sendo a prisão do presidente Lula da Silva e a eleição do deputado Jair Messias Bolsonaro em 2018 a sua demonstração mais dramática.
O impacto de tudo isso sobre a educação em geral e sobre a vida universitária em particular ainda merece reflexão mais detida. Como diria o poeta: “ninguém passa incólume sob palmeiras”.
Quando se chega à presidência de Jair Messias Bolsonaro, o Ministério da Educação – que é, de longe, o ministério mais decisivo para o presente e o futuro da nação brasileira – vai legado ao Senhor Ricardo Vélez Rodríguez. Talvez seja inconveniente lembrar, mas é fundamental fazê-lo, que o fiador desse obscuro e obscurantista professor colombiano emigrado para o Brasil foi o não menos obscuro tampouco menos obscurantista guru brasileiro emigrado para os Estados Unidos, Olavo de Carvalho.
Olavo de Carvalho, consultado pela claque bolsonarista, reconheceu Ricardo Vélez Rodríguez como o único capaz de encaminhar a bom termo a guerra cultural necessária para a superação do comunismo alienígena que, segundo ele, estava na iminência de corromper integralmente a alma, o coração e a mente dos pobres brasileiros frequentadores de espaços formais de formação – entre os quais, as universidades; notadamente, as universidades públicas federais.
Desnecessário se demorar sobre o rebaixamento da globalidade do que historicamente se reconheceu por educação nacional e, especialmente, do ensino superior, sob essas orientações.
Se nada disso fosse suficiente para a aceleração do descarrilamento de tipo ferroviário da universidade brasileira, a pandemia veio impor desafios incomensuráveis para dias de paz e irrealizáveis para momentos de guerra. “Noussommesenguerre”, bradou o presidente francês e muitos outros. Porquanto, sim: viveu-se a pandemia como uma guerra.
A imposição do ensino à distância e da burocracia remota causou e tem causado disfuncionamentos no cotidiano das estruturas de ensino universitário que tornaram o convívio psicologicamente desafiador – para não dizer insuportável. A completa sujeição da coletividade universitária ao isolamento, muita vez precário e modorrento, durante o biênio 2020-2021, promoveu o afloramento de múltiplas formas e níveis de doenças mentais e emocionais, deformações morais e açodamento de caráter que contaminam e modificam, grave e indelevelmente, o convívio intramuros desde o retorno ao “normal”, mais fortemente em inícios de 2022.
Depois das recomendações de se registrar em segredo a atuação dos “inveterados” “doutrinadores” “esquerdistas” em suas práticas universitárias – coisas dos tempos do Senhor Abrahan Weibraub à frente do Ministério da Educação –, outro dia, em pleno retorno às aulas presenciais, após vacinação em múltiplas doses, circulou a notícia de que um importante departamento de uma importante universidade brasileira estava às vias de baixar uma portaria determinando que os professores lecionassem sentados para não ofender nem melindrar os seus ouvintes com a eventual proeminência de seus membros penianos sob as suas vestimentas.
Sim: é esse o nível de absurdos em que tudo chegou. E – suprimam-se as ilusões – pode ainda muito piorar.
O desacorçoo de Paulo Martins tem, portanto, razão integral de ser. A dérision, déconstruction e destruction tomou conta da universidade e está para às voltas de amordaçá-la ou golpeá-la fatal e terminalmente.
O nobre Diretor problematiza Universidade pra quê?. Uma interrogação. Mas a sua angústia generalizada impele a toda a sociedade brasileira a meditar sobre, em verdade, o que fazer? Uma afirmação. Algo precisa ser feito.
A universidade, sobretudo a pública, se assemelha a um edifício desabado, como na Matrix de Morpheus, onde quem quiser ver, que veja: welcome to the desertof the real.
Nesse deserto do real da verdade universitária, nenhum destacamento da universidade segue mais desertificado que o seu jardim mais florido que aninha o cultivo delicado e inclemente das ciências humanas e das humanidades. Nada está mais em decomposição que o ambiente dessas flores. A realidade dessas áreas é dramática. E, por ser assim, o drama delas acaba por alimentar o esfarelamento de tudo que um dia se entendeu por cultura.
Pouco a pouco, a cultura e a formação aguda e inquestionavelmente erudita ofertadas nos cursos de Letras, Artes, Filosofia, História foram distorcidos, banalizados, humilhantemente seviciados. Os nobres e honrados antigos praticantes desses sacerdócios em nível universitário estão sendo atropelados pelas novas tecnologias e por novas gerações de colegas, muita vez, ex-alunos, que, não raramente, são instantaneamente transformados em mão de obra uberizada da engrenagem de dérision, déconstruction e destruction do saber.
Paulo Martins, melhor que ninguém, sabe disso tudo e induz – sutil e elegantemente, mas sem dizer– a tudo isso se repensar.
Quando a “mãe do PAC” correu riscos eminentes de perder as eleições presidenciais de 2010 para o candidato José Serra, emergiu, desde as grandes universidades brasileiras,o movimento “o silêncio dos intelectuais”. Concluído o seu serviço de eleger a sucessora do presidente Lula da Silva, todos os professores-intelectuais ou intelectuais-professores convocados retornaram às suas zonas de segurança para se proteger do verdadeiro rolo compressor do bolsolavismo nascente.
Esse movimento, fartamente extremista, promoveu, seguramente, a maior ofensiva contra a universidade e contra a sua coletividade na história, recente ou pretérita, do país.
Lacrar e destronar. Esse não era, necessariamente, o seu mantra. Mas bem que poderia, claramente, sê-lo. Pois, foi o que se tentou. E, muita vez, o que se fez. E se conseguiu. Exemplos abundam. Nunca o professor universitário foi tão ofendido, xingado, humilhado, desrespeitado. Nunca.
No fundo, depois que o primeiro-ministro britânico David Cameron vendeu a sua reeleição pelo Brexit e que o bonifrate Donald J. Trump comprou o partido republicano norte-americano para se impor como presidenciável, a pós-verdade virou o pão de cada dia em todo o Ocidente escolarizado e sobre-educado. No caso brasileiro, essa pós-verdade vem se manifestando sorrateiramente desde bem antes.
Desde, por exemplo, quando adoxa da bien-pensance de mistura com alguns acadêmicos universitários preteriu Olavo de Carvalho do debate público nacional e subestimou o seu alcance nos subterrâneos da alma dos brasileiros com acesso limitado ou interditado a espaços universitários verdadeiramente acadêmicos e verdadeiramente intelectualmente honestos do país.
Como eximir frações da universidade brasileira de nada ter sinceramente notado, antecipado, problematizado sobre a influência letal do guru da Virgínia sobre um movimento que iria viabilizar e pavimentar o acesso de um literalmente estúpido acompanhado de descorteses à presidência da República de um país-continente de 215 milhões de habitantes e uma das dez economias do mundo?
A universidade brasileira precisa promover um amplo exame de consciência.
O presidente Lula da Silva começou a lançar as bases para isso em sua reunião com os Reitores, já na terceira semana de seu novo mandato. Pergunta importante: é (foi) o suficiente? Por resposta, diria um desavisado que “nem só de pão vive o homem”. Precisa-se de afago, carinho, care. E foi isso que o presidente Lula da Silva promoveu na referida reunião. A movimentação do presidente ao encontro da educação e da universidade foi justa e literalmente esse de “yes, we care”. Mas, como questionaria, novamente, o desavisado: et après?
Paulo Martins não chega a esses termos por elegância. Mas é evidente que essa perplexidade toda o perturba, como perturba a todos. E perturba, notavelmente, porque ele, Paulo Martins, carrega inclementemente nas tintas para acentuar o verdadeiro pandemônio universitário que o “desgoverno” acelerou e legou. Trata-se, vilmente, de uma “herança sem testamento”. Uma tragédia ferroviária que se precisa administrar.
Ao fim de sua intervenção-apelo, Paulo Martins infere que “a crise da universidade, antes de tudo, deve refletir a respeito da atração dos jovens” e questiona: “Será que professoras e professores das melhores instituições do Brasil conseguem entender que aquilo que lhes foi importante não é mais suficiente a cativar os estudantes de hoje? Talvez os jovens não busquem a universidade pelos mesmos motivos. Daí nos resta ponderar: ‘para que servimos?”
Constrange refletir “para que servimos?”. Incomoda reconhecer que a universidade namora com a irrelevância. Perturba apanhar um uberista com formação de engenheiro. Mas essa é a realidade brasileira que toca a todos abordar.
O edifício cultural, moral e racional encarnado na universidade está desabado ou desabando. Os seus alicerces – fundados nos mundos das ciências humanas e humanidades – foram desertificados. “Para que servimos?” é um claro apelo de desesperação, reconhecimento e superação dessa desertificação. “O que fazer?”, especialmente desde essas áreas, deve de ser o passo necessário para reconstrução do que merecer reconstrução.
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela USP, pós-doutor em Relações Internacionais pela Sciences Po de Paris, pesquisador do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da USP e professor na UFGD.
Crédito da foto da página inicial: Marcos Santos/USP Imagens
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