Num artigo publicado no Brasil Debate em 2015 abordei (a partir da participação em atos e de pesquisa de doutorado ) como “mulheres que se autodenominam camponesas e/ou indígenas se destacam em mobilizações e organizações de resistência a vários empreendimentos econômicos privados ou governamentais que incidem de forma especialmente negativa sobre as mesmas, trazendo degradação do meio ambiente, exclusão social e a violência”.
Neste artigo queria retomar este tema, motivada pelo fato político que vivenciaremos neste mês. Nesta terça feira (13/08) a capital do país será mais uma vez tomada pelas margaridas em marcha : mulheres do campo, agriculturas familiares, quilombolas, pescadoras e apoiadores de suas lutas – que na verdade nunca foram apenas suas porque sempre estiveram enraizadas em questões mais amplas de igualdade social e de gênero, produção e alimentação e ambientes saudáveis.
A Marcha das Margaridas tem quase 20 anos de história e se tornou uma das maiores manifestações de trabalhadores do mundo. Este ano as mulheres do campo marcam uma aliança com as mulheres da floresta, seguramente outro marco histórico, com a realização conjunta da primeira Marcha das Mulheres Indígenas – “Território: nosso corpo, nosso espírito”. Essa união das mulheres vem de longe e de desdobramentos em suas aldeias, comunidades e regiões, como ação nacional vem se consolidando desde meados de 2016 em encontros das mulheres no Acampamento Terra Livre.
O tema escolhido se “hermana” com os de outras ações coletivas e contribuições teórico-epistêmicas de mulheres indígenas de toda América Latina – que crescentemente vêm se unindo em coletivos e redes de mulheres indígenas, originárias, defensoras – e expressando um questionamento próprio que se origina de suas vivências, etnias, comunidades cosmovisões e do entendimento da mulher, da comunidade e da natureza (algumas reflexões mais aprofundadas estão no artigo “Coletivo de Mulheres Indígenas na América Latina” .
Neste contexto de resistência para manter e fazer valer direitos, não há como não pensar, com pesar, no desmonte de estruturas de governo e políticas recentes. Seriam muitas as perdas ou ameaças, indicarei a seguir apenas algumas que considero estritamente relacionadas ao contexto dessas mulheres. Começando com as mais recentes, como a extinção do MDA (2019) e o desmonte de políticas para a agricultura familiar e cooperativismo como PLANAPO (2013) e um projeto de um “Brasil Agroecológico”; a míngua de financiamento em parceria com o BNDES como Pronaf – Mulher e da Política de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta (2014), a ameaça às políticas de acesso e permanência específicas para indígenas nas universidades públicas. Indo para “perdas históricas”, como a declarada ameaça à continuidade da demarcação de terras indígenas e territórios já demarcados e ao princípio de uso social da terra da Constituição de 1988 e a Lei Ambiental (1998) e o desmantelamento da FUNAI e das políticas relacionadas à educação e saúde indígena.
Mas, não quero finalizar com as perdas, porque “marcha-se junto e para adiante”. O protagonismo das mulheres indígenas e sua união em torno de ações coletivas comuns nos últimos anos mostraram ganhos reais no campo da política e da visibilidade no imaginário social mais amplo. Em 2018, a primeira mulher indígena foi eleita para representar o estado de Roraima no Congresso Nacional no Brasil, a deputada Joênia Wapichana (Rede). A líder indígena Sonia Guajajara concorreu como vice-presidente na chapa do candidato Guilherme Boulos (PSOL), primeira vez que um indígena concorre a tal posto.
No 15º Acampamento Terra Livre em 2019, as mulheres indígenas se reuniram e deliberaram como pauta prioritária: “Território, nosso corpo, nosso espírito”, esse tema foi escolhido como mote do calendário de lutas do movimento das mulheres indígenas que terá início em agosto e da primeira Marcha de Mulheres Indígenas – e aí voltamos às Marchas desta semana…
Também em vários depoimentos recentes para matérias jornalísticas, mulheres indígenas falam sobre o acesso à educação e posições de liderança , sobre as possibilidades e limites para articulação entre feminismo e lutas indígenas no Brasil . Uma visibilidade inédita das indígenas não somente em meios de comunicação popular/alternativa. Nessas declarações vemos a determinação dessas mulheres, seus fortes vínculos com suas comunidades e territórios e que a violência da imposição pelo “desenvolvimento” com a invasão dos territórios e contra suas comunidades, crianças e mulheres, contará cada vez mais com a força inestimável das mulheres, que mesmo assumindo uma posição de “guerreiras” estão falando desde outro local. Como as mulheres do campo que já marchavam – falam da ação e transformação a partir também do cuidado, da nutrição, da vida, do semear das mulheres agricultoras que “semeiam florestas” e das indígenas Yarang. Elas são o reverso de um tsunami: mantêm, renovam e geram a vida nos diversos corpos e territórios – e não devastação. Esse tipo de anti-tsunami que tão “antropocinicamente” ainda esperamos.
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