Marcelo Crivella foi o prefeito do Município do Rio de Janeiro, capital do estado e principal economia, no período 2017/2020. Sua derrota na tentativa de reeleição é possível ser explicada em parte por erros na gestão de suas áreas de planejamento e fazenda. Importante ressaltar, erros que se agravaram no último ano de gestão (considerando dados até 01/12/2020 e atualizados pelo IPCA). Por exemplo, 2020 foi o único ano em que a despesa atualizada (início do exercício) é revista para um valor maior que a despesa prevista (valor fixado em LOA no final do exercício anterior), respectivamente R$ 32,8 bilhões e R$ 33,1 bilhões.
Isso sugere uma expectativa exageradamente otimista antes da pandemia. Geralmente a revisão é para baixo, com algum contingenciamento precaucional. Ao contrário disso, acreditou-se capaz de gastar mais. Lembrando que se trata do último ano de gestão no qual se deseja terminar realizações, ainda mais na busca por reeleição. Esse otimismo exagerado fica evidente quando se nota a despesa empenhada, ou seja, aquela que de fato não é mais uma previsão (estimativa) e sim uma ordem de despesa (ação já propriamente financeira). Afinal, em 2020, a despesa empenhada é a mais baixa de toda a gestão, respectivamente R$ 26,6 bilhões. Ou seja, projetou-se a maior despesa de toda a gestão e fez-se a menor. Isso se reforça ao notar a evolução no mesmo sentido da despesa liquidada e da despesa paga, que são ações feitas em sequência.
Uma das razões para esse descompasso é claramente um crise de receitas. Desde 2017, a receita arrecadada vinha num leve crescente ano após ano, e, em 2020, ela desaba para o menor valor de toda gestão, R$ 25,8 bilhões. O otimismo refletido no lado das despesas havia também no lado das receitas. Isso fica evidente no valor de frustração de arrecadação em 2020, R$ – 7,0 bilhões. Esse foi o pior despenho de toda gestão, também invertendo uma tendência anterior que era de reduzir essa frustração.
A evolução de restos a pagar demonstra que o problema das finanças não se deve só aos erros de planejamento orçamentário em 2020. Especificamente, a capacidade de o governo honrar seus compromissos foi se deteriorando de forma cumulativa ao longo de toda a gestão, chegando ao valor recorde de R$ 4,5 bilhões em 2020. Ou seja, até 2019, a gestão fazendária já se mostrava incapaz de reduzir seus problemas de execução orçamentária e financeira (como ficou visível nos atrasos a fornecedores e terceirizados). Em 2020, ao problema de execução se soma uma frustração de arrecadação recorde, situação piorada pelo otimismo exagerado mencionado antes.
A crise de receita se deve em grande medida à evolução do ISS. Esse imposto representa em torno de 20% da receita total. No período 2019/2020, a variação foi de R$ -1,0 bilhão. Contudo, o problema foi generalizado, havendo variação negativa anual em todas as principais categorias de arrecadação. Pondera-se que, em 2020, o tamanho do rombo no ISS é compreensível pelas medidas restritivas diante da pandemia afetarem principalmente o setor serviços. Mas surpreende que não foram só impostos diretamente associados à dinâmica econômica (pró-cíclicos) que tiveram despenho ruim. Por exemplo, o IPTU, imposto sobre patrimônio também. Cabe lembrar que ele representa em torno de 13% da receita total.
Em 2020, teve-se a maior frustração de arrecadação de IPTU de toda gestão, R$ -1,4 bilhão. Chama a atenção que não foi só maior frustração do principal e encargos, R$ – 620,0 milhões, mas também da própria dívida ativa associada e encargos, R$ – 774,7 milhões. Ou seja, em 2020, a gestão fazendária também piorou sua capacidade de renegociação com contribuintes em situação irregular.
Notem que, em 2019, já estava bem ruim a frustração referente à arrecadação de dívida ativa, mas 2020 ainda conseguiu ser pior. Se olharmos do ponto de vista de evolução, notamos que, no comparativo 2019/2020, todas as subcategorias de arrecadação associadas ao IPTU tiveram variação negativa. Essa situação é inédita ao longo da gestão, com nenhuma delas compensando com uma variação positiva, o que levou, pela primeira vez, a variação total a ser negativa, R$ – 402,7 milhões.
Portanto, a gestão municipal do prefeito Crivella termina de forma melancólica. Não apenas não conseguiu deixar nenhum legado significativo em desenvolvimento socioeconômico, como não demonstrou capacidade de recuperação das finanças públicas. Cabe enfatizar que esse resultado não pode ser debitado exclusivamente aos efeitos recessivos em um cenário de pandemia. Afinal, problemas de execução financeira foram recorrentes (vide o acúmulo de restos a pagar) e se somaram a erros de planejamento, o que demonstra baixa capacidade de priorização de ações.
O principal resultado de sua gestão é consolidar a perda de autoestima da população carioca com a política. Não à toa, no 2º turno da eleição de 2020, quase metade do eleitorado carioca renunciou a escolher o prefeito do Rio (brancos, nulos e abstenções). Só de abstenções, ou seja, pessoas que nem foram votar, o saldo já é um valor maior que obtido para eleger Eduardo Paes, o gestor anterior a Crivella que retorna ao posto.
Esse parece ser o principal problema do momento atual da democracia no Brasil e, em especial, no Rio. Um enorme déficit de representatividade. Uma governabilidade que é obtida não pela legitimidade do voto, mas no que for preciso fazer para não ser derrubado por qualquer perda de maioria parlamentar (cabe lembrar que diversos pedidos de impeachment de Crivella foram arquivados ao longo de quase toda a gestão). E mais, a apatia com que a população reage ao papel da política, encarando o rito do voto com cada vez mais desinteresse.
Hoje o Rio sintetiza a negação de um projeto generoso e inclusivo, de tal forma que elites políticas buscam se reafirmar pela própria desconstrução do “mito” do Rio. Ilustra bem isso a crítica ao uso do chapéu panamá pelo atual prefeito no último debate do 2º turno. Na ocasião, Crivella associou a vestimenta de uma divindade religiosa ligada às massas populares a símbolo de “ostentação” personalista do oponente e desperdício de dinheiro público com o carnaval. O mesmo chapéu panamá, já adotado por Paes, foi vestimenta de autoridades como Getúlio Vargas e de gente do povo como Noel Rosa e Madame Satã. Essa conexão não obscurece a brutal desigualdade de condições de vida e contrastes sociais. É o fermento da autoestima coletiva, ou, como diria o saudoso professor Carlos Lessa, falecido esse ano, um traço do espetáculo que foi (e ainda voltará a ser) a “ética da carioquice”.
O saudoso professor sempre se lembrou da importância da autoestima para um povo, o que cria formas de identificação que superam barreiras sociais junto a uma simbologia de riqueza compartilhada, em particular, comportamental e cultural. Se as condições de vida das massas populares são precárias, suas festas são monumentais e luxuosas dentro das suas possibilidades. Economiza-se para gastar e incorporar alguns traços de inserção na modernidade, mesmo que falte em universalização dos avanços da urbanização. E exatamente isso que devíamos estar buscando resolver pela política pública, e potencializando vetores históricos de brasilidade frutos da interpenetração cultural entre diferentes classes.
Crédito da foto da página inicial: Fernando Frazão/Agência Brasil
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