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O ‘socialismo de mercado’ e suas lógicas de funcionamento (para I. Rangel e A. Mamigonian)

Um sintoma da mediocridade humana e intelectual geradas pela era do capitalismo financeirizado está justamento no que Harold Bloom chamou de “angústia da influência” (1). Trata-se de uma expressão justa para identificar praticamente toda uma geração de formados na década de 1990 que se preocupam – acima de tudo – com a maximização de sua própria “utilidade marginal”. Geralmente jovens de classe média, anões que pensam ser gigantes, que ascenderam na carreira acadêmica com muita dificuldade em admitir seus mestres e inspirações.

Remando contra a maré decidimos, prestar uma homenagem a Ignacio Rangel (2) e ao professor aposentado do Departamento de Geografia da FFLCH-USP, Armen Mamigonian.

Armen Mamigonian


Em artigo, buscamos demonstrar que o crescimento do setor estatal na economia chinesa, acelerado desde 2009, abre condições para a possibilidade de o “modelo chinês” se tratar de algo que vai se distanciando – historicamente – de um modelo típico de “capitalismo de Estado”, e mais longe ainda de ser um “capitalismo liberal”. Diante de uma gama de evidências afirmamos que o “socialismo de mercado” já pode ser classificado como uma nova formação econômico-social (FES, a partir de agora) que tem na complexidade seu principal atributo, pois implica se tratar de uma formação marcada pela convivência de diferentes estruturas/formações sociais.

Ignacio Rangel


É nesta nova FES que se assenta o “socialismo de mercado” como um modo de produção complexo. Por não se tratar de um modo de produção puro, o “socialismo de mercado” deve ser tratado como um fenômeno regido por combinações entre diferentes modos e relações de produção. Classificar e expor as lógicas que regem o desenvolvimento do “socialismo de mercado” foi o objeto de análise neste trabalho. Na verdade trata-se de mais um resultado de um trabalho desenvolvido desde 1994 (por um dos autores, Elias Jabbour) e retomado com força desde 2016 (3).

A hipótese central do artigo foi-se desenvolvendo ao longo dos últimos anos. Partimos do pressuposto de que se o século 20 foi marcado pelo processo histórico que desenhou uma economia surgida a partir do capital financeiro, do keynesianismo e da planificação soviética, concluímos que estamos diante de um processo histórico onde a economia de uma nova FES está sendo desenhada a partir da síntese entre o processo de financeirização, agressividade imperialista, novos paradigmas produtivos e tecnológicos (abrindo amplos desafios e possibilidades à planificação) e das novas e superiores formas de planificação sendo gestadas e executadas em larga escala na China.

Além da introdução, o artigo está dividido em outras cinco seções. Na seção 2, apresentamos a categoria marxista de FES como o principal elemento de validação teórica que utilizamos tanto no sentido de compreender o fenômeno chinês quanto para demarcar fronteira com as visões hegemônicas reinantes tanto nos debates sobre a natureza do sistema chinês quanto em relação aos postulados pós-modernos.

Na seção 3 iniciamos expondo nossa base de interpretação sobre a natureza do socialismo para, em seguida, expor as evidências que sustentam nossa percepção do “socialismo de mercado” como um modo de produção não fundamental como consequência de se tratar de um modo de produção assentado sob uma formação social complexa, ou seja, uma formação que associa no mesmo modo de produção relações de produção de diferentes épocas históricas. Na seção 4 serão expostas as cinco lógicas gerais da formação histórica e de funcionamento da economia chinesa, descrevendo o processo de desenvolvimento do país, no campo da Economia Política.

Reabrindo feridas

Na seção 5 buscaremos justificar a necessidade de se construir uma nova teoria econômica, capaz de desvendar um processo histórico onde a economia da nova FES está sendo desenhada a partir da síntese, já citada acima entre o processo de financeirização, agressividade imperialista, novos paradigmas produtivos e tecnológicos e das novas e superiores formas de planificação sendo gestadas e executadas em larga escala na China.

Em resumo esta necessidade de uma “nova teoria” é coerente com o que Rangel chamava de historicidade das leis da ciência (1956 [2005], p. 206). As teorias, por serem históricas, definem o comportamento da realidade em certas circunstâncias e valem apenas enquanto estas perduram. Em suma, a ciência econômica varia com o modo de produção e este muda ininterruptamente (Rangel, 1957 [2005], p 288).

Expomos possibilidades de combinações teóricas e possíveis aproximações. Terminamos o artigo ao mesmo tempo expondo e se posicionando sobre as feridas abertas (sob forma de uma “dialética de Saturno”) pelas discussões sobre o socialismo, sua natureza e a China.

Notas

(1) BLOOM, H.: The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry. New York: Oxford University Press. 1997. Neste livro Bloom chama a atenção para a relação que Nietzsche faz sobre Goethe e que cabem perfeitamente a Rangel e Mamigonian, por exemplo (p. 52): Every talent must unfold itself in fighting (…).Nietzsche remarks, and so his vision of Goethe is of a fighter for Totality (…). Ainda neste livro, aos homenageados cabem as palavras do mesmo Goethe sobre o papel das influências intelectuais, a antítese da angústia da influência (p. 52): Only by making the riches of the others our own do we anything great into being.

(2) Rangel, sob um ponto de vista particular, foi o maior pensador brasileiro do século XX e, talvez, o intelectual marxista mais completo surgido na América Latina.

(3) Tratam-se dos seguintes trabalhos: JABBOUR E.; DANTAS, A.: The political economy of reforms and the present Chinese Transition. Brazilian. Journal of Political Economy, v. 37, n. 4, p. 789-807, 2017. http://www.scielo.br/pdf/rep/v37n4/1809-4538-rep-37-04-789.pdf

JABBOUR, E.; PAULA, L. F.: China and “Socialization of Investment”:  a Keynes-Gerschenkron-Rangel-Hirschman Approach. Revista de Economia Contemporânea.  N. 22 (1), p. 1-23, 2018. http://www.ie.ufrj.br/images/blog/rec2217espchinaa-china-e-a-socializacao-do-investimento.pdf

JABBOUR, E.; PAULA, L. F.:  The Chinese Catching Up: A classical developmentalist approach. ABDE-BID: Rio de Janeiro, 2017. https://www.anpec.org.br/encontro/2017/submissao/files_I/i2-2f530e72225bbb767728d9311555cc5c.pdf

JABBOUR, E; DANTAS, A; BELMONTE, A.: “Business Cycles, Development and the Market: Notes on Socialism and the ‘Primary Stage’. In: BERTOLINO, O; MONTEIRO, A.:. (Org.). 100 anos da Revolução Russa: legados e lições. São Paulo: Anita Garibaldi, 2017.

(4) RANGEL, I.:  Dualidades e “escravismo colonial”. Encontros com a Civilização Brasileira, nº 3, p.79-92, Set. 1978.

(5) Rangel não omite que sua referência – em relação à categoria marxista de modo de produção – seria a sequência por Stálin sugerida, como segue: o comunismo primitivo, o escravismo, o feudalismo, o capitalismo e o socialismo. Tratava-se, segundo o líder soviético, dos chamados cinco modos de produção fundamentais. Segundo Rangel, a “dualidade brasileira”, assim como o “modo de produção asiático” não eram modos fundamentais de produção e sim modos de produção complexo. Tais modos de produção complexos podem – e devem ser estudados como formações sociais complexas, que associam no mesmo modo de produção relações de produção de vária etiologia, isto é, não homogêneas.

Crédito da foto da página inicial: Arquivo EBC

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