O Brasil se aproxima rapidamente das 300 mil mortes por Covid-19. O país alcançou durante as últimas semanas níveis recordes de contaminação e óbitos diários, assumindo, inclusive, a dianteira no número de novos casos registrados no mundo, posição até então ocupada pelos Estados Unidos. É relativamente simples listar as inúmeras razões pelos quais o país vive o que só se pode chamar de tragédia nacional, cuja síntese se expressa sob o nome de Jair Bolsonaro.
O país tristemente repete o caminho percorrido por outras nações em que a história deslindou-se como farsa. Assim como Napoleão III afundou a França na Guerra Franco-Prussiana e Hitler a Alemanha na Segunda Guerra Mundial (apenas citando os exemplos mais conhecidos), o Brasil vive seu próprio desmoronamento civilizatório. É como se a história reservasse a todos os que desprezassem seus ensinamentos uma espécie de purga, um tormento necessário antes que um novo período possa iniciar.
É irônico pensar desse modo, mas há uma outra ironia um tanto obscurecida pela dinâmica atual. Por mais que a pandemia tenha trazido um dos cenários mais catastróficos da história brasileira, ela ainda responde a fatores conjunturais, inimagináveis até dezembro de 2019, quando os primeiros casos de infecção pelo vírus começaram a surgir na China. Evidentemente, as circunstâncias que tornaram um problema de contornos locais em uma pandemia global não a torna menos importante.
No entanto, discorre-se aqui de outra crise, relacionada e convergente à causada pelo coronavírus, cujos impasses relacionam-se a aspectos estratégicos da política nacional. Trata-se aqui sobre o retorno da inflação e como esse fenômeno é central para a economia política brasileira do pós-Plano Real.
De fato, se a Covid-19 possui aspectos relacionados à conjuntura, a crise que aqui se trata demonstra relevância estratégica. Uma se relaciona a assuntos da pandemia. Já a outra desponta como desarranjo no cerne do acordo de classes oriundo do Plano Real. Apesar de muitos, inclusive o próprio presidente, tratá-las como assuntos dissociados, um exame rápido é capaz de mostrar o óbvio: apenas superando a primeira, o país poderá resolver os impasses da segunda. A questão que nos parece hoje, no entanto, é sua diferença fundamental. Não apenas são temas diferentes oriundos de áreas diferentes, mas é necessário considerar que está ocorrendo um desarranjo estratégico no cerne do Brasil pós-Plano Real, cujo principal sintoma é o retorno do temor inflacionário.
A conjuntura associada à pandemia agrava a situação, mas não é novidade afirmar que é a própria política econômica do governo Bolsonaro que elabora as condições necessárias para um novo período de elevação do nível geral de preços no país. As regras do Plano Real estão sendo quebradas e a conformação da sociedade brasileira a partir de sua inauguração se altera.
Em primeiro lugar, é necessário afirmar que o Plano Real não foi apenas um plano de estabilização monetária. Com sua URV e liberalização econômica tornou-se, de fato, marco institucional da economia brasileira, apresentando um modelo de acumulação de longo prazo, cuja principal trajetória delineou o processo de financeirização da economia nacional. A partir dele, as bases da dominância financeira estavam lançadas, sendo aperfeiçoado em 1999, com a implementação do regime de metas.
A flexibilização cambial reforçou a centralidade da manipulação dos juros, indo não apenas contra os ímpetos de uma demanda agregada instável, mas fazendo o papel de uma âncora cambial implícita em lugar da explícita paridade fixa do dólar norte-americano e o real entre 1994 a 1999. Um real apreciado frente ao dólar sempre foi peça chave no controle dos preços internos, viabilizando, inclusive, a manutenção de riqueza financeira em dólar.
Nessa dinâmica, pegavam-se dois coelhos com apenas um movimento: a alta dos juros mantinha desaquecida a demanda interna, apreciava o câmbio e permitia ganhos em dólar dado o diferencial de juros internos e internacionais. Ideologicamente, institui-se o combate à inflação como sentido primordial da política econômica. A partir daí, a política monetária mantinha caráter tendencialmente restritiva.
A “República do Real”[1], assim nominada por Marcos Nobre, erigiu-se sob a égide do combate à elevação do nível geral de preços, surgindo, assim, o baluarte do novo modelo de longo prazo da economia brasileira. A primazia das finanças aparece como decorrência de uma política de juros altos, assumindo, como correspondência política desse arranjo, a conhecida polarização entre PT e PSDB, principais atores da cena política até 2018.
A eleição de Jair Bolsonaro foi uma das primeiras “rachaduras” no “edifício” institucional da “República do Real”. Nesse contexto, cabe lembrar, que os dois presidentes que não só terminariam seus mandatos, mas conseguiram se reeleger, levaram à risca a política monetária da “República do Real”. Tanto Fernando Henrique Cardoso quanto Lula compreenderam que o combate à inflação, por meio da manipulação dos juros via Selic, tornara-se essencial para o desenrolar do próprio jogo político. Foi com Dilma na Presidência da República que, pela primeira vez, testaram-se os limites desse acordo com a alteração no modelo macroeconômico: a nova matriz macroeconômica elaborada em 2012 e a consequente pressão pela queda da Selic desvalorizaram o câmbio e tiveram influência altista no nível geral de preços. Dessa forma, o impeachment, construído sob a ficção das “pedaladas fiscais”, não foi mera coincidência.
Por motivos bem diferentes, tendo em vista a desastrosa gestão econômica do atual governo, ao permitir que a inflação se eleve, a equipe econômica do governo Bolsonaro não parece perceber a profundidade da questão: o combate à inflação possui força estratégica na economia política brasileira do século 21. Ideologicamente, constituiu-se pelo próprio discurso neoliberal como uma “conquista de todos os brasileiros”.
Ao assumir o retorno da inflação, o governo vai de encontro ao modelo inaugurado em 1994 e ao arranjo instituído desde então. Por outro lado, corrói o poder de compra dos brasileiros em geral, sensivelmente os mais pobres. Nesse sentido, não deixa de ser surpreendente que, considerando a importância desse aspecto, ainda seja utilizado de maneira tímida na disputa política nacional.
Cabe salientar, no entanto, que em relação à camada mais pobre da população, ao contrário dos benefícios trazidos às finanças pelos juros altos, a via de combate ao fenômeno inflacionário instituída pelo Plano Real tira com uma mão aquilo que aparentemente entrega com a outra: as vantagens de uma inflação sob controle para os trabalhadores em geral esvaem-se no desemprego e na queda da atividade econômica, causados por uma política monetária restritiva.
No entanto, com a atual crise econômica e a falta de rumos da própria equipe econômica, vive-se já esse dilema: queda da atividade da economia e desemprego associado à inflação. Em outras palavras, diminuição da renda e um número cada vez maior de desempregados com corrosão do poder de compra. Esse é o quadro econômico da tragédia civilizatória que vivemos.
Portanto, por sua centralidade estratégica, não se pode ignorar o peso que o retorno da inflação ao cenário econômico nacional terá na disputa política até 2022. Foi em torno desse tema que se erigiu um arcabouço institucional que influencia profundamente o cotidiano da população brasileira. Até mesmo o imaginário de uma época estará em jogo naquilo que se considerou uma “conquista de todos os brasileiros.” O bolsonarismo, conscientemente ou não, faz suas jogadas contra o baluarte da “República do Real”.
[1]NOBRE, Marcos. Contagem Regressiva. Revista Piauí. Dezembro de 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/contagem-regressiva/.
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