O fenômeno chinês explicitou a inconsistência de um padrão monetário universal fixado no dólar. O resultado é o desequilíbrio do conjunto dos países e a concentração da riqueza financeira
A posição do dólar como moeda internacional não vive uma “sinuca de bico” como hoje desde a segunda metade dos anos 1970. Na ocasião, a forte volatilidade das taxas de câmbio – derivada dos desarranjos causados pelo choque do petróleo em 1973 e pelo fim da conversibilidade do dólar com ouro no mesmo ano – atinou desconfianças sobre o padrão monetário ancorado na moeda norte-americana.
Os centros industriais de Japão e Alemanha já haviam em muito superado a competitividade industrial dos EUA, inclusive ao saltar das inovações complementares do padrão tecnológico da 2° revolução industrial para a era da informática. O dólar se tornava um inconveniente para os desenvolvimentos nacionais no centro e na periferia.
Para resumir, os EUA gozavam de um “privilégio exorbitante”, como apelidou o então ministro e futuro presidente francês Valéry Giscard D’Estaing: o arranjo monetário internacional permitia aos norte-americanos sustentar déficits orçamentários ao mesmo tempo em que seu déficit externo apresentava um crescimento estrutural.
O endividamento norte-americano, portanto, permitia que o governo sustentasse o crescimento da economia baseado no boom consumista que marcou a década de 1960 em diante. Não demorou para que os clássicos modelos da Ford fossem substituídos por imponentes carros franceses, alemães e japoneses, e para que as fábricas americanas instaladas em outros países inundassem a “terra da liberdade” de produtos mais baratos que aqueles produzidos em solo americano.
Paralelamente, Wall Street registrava ganhos de capital vinculados à farra do Euromercado – espaço onde especuladores arbitravam ganhos com as diferentes taxas de juros praticadas na Europa e resguardavam sua riqueza na dívida pública norte-americana se livrando dos impostos através de paraísos fiscais.
O dólar seguiu uma trajetória de intensa desvalorização entre 1973 e 1979, obrigando os países centrais a perseguir os movimentos da moeda yankee, enquanto na periferia a elevação dos custos de produção causados pelo choque do petróleo constrangia a continuidade do crescimento e de seu desenvolvimento industrial. Não demorou para que tanto internamente, quanto fora dos EUA, a inflação disparasse no ritmo da desvalorização do dólar e do aumento dos preços de energia. Conclusão: ou o mundo acabava com a soberania do dólar, ou ela acabaria com o mundo.
A resposta norte-americana em 1979 foi singular e singularmente hegemônica: em pouco menos de um ano, a taxa de juros do tesouro norte-americano triplicou, enxugando a liquidez existente nos países em desenvolvimento e pegando de calças curtas os concorrentes industriais dos EUA.
A valorização do dólar forçou a desvalorização das demais moedas, gerando ajustes simétricos nas taxas de juros e derrubando o crescimento das economias centrais juntamente com a competitividade industrial de Japão e Alemanha. Foi o fim definitivo do mundo desenhado em Bretton Woods, um arranjo que condicionava a acumulação de riqueza às necessidades de produção e consumo das economias nacionais. Na periferia, a crise da dívida se instalou e o império do dólar contra-atacava as tentativas de desenvolver um sistema monetário fora do domínio norte-americano.
De lá até então, a revoada neoliberal tomou o mundo e a obsessão pela estabilidade ancorada no dólar subjugou os habitantes do espaço-mundo à inglória escolha entre comandar suas taxas de câmbio, operar autonomamente suas taxas de juros ou controlar os fluxos de capitais. A aceleração da globalização produtiva e financeira tornou essa escolha uma bela ficção teórica: os controles de capitais foram abandonados, as taxas de câmbio passaram a flutuar em resposta ao dólar e as taxas de juros se ajustam segundo a necessidade de financiamento externo.
Exceção feita, é claro, à China, o sinuoso dragão que tomou as rédeas do próprio destino aprendendo que, no jogo do mundo dolarizado, o controle da moeda e das políticas de desenvolvimento não pode ficar à mercê dos mercados financeiros sedentos na ida especulativa aos parquinhos periféricos e o subsequente retorno para os títulos norte-americanos na busca pelo conforto da liquidez.
Esse me parece o ponto essencial. O fenômeno desencadeado pela China explicitou uma vez mais a inconsistência de um padrão monetário afiançado por um símbolo particular da riqueza universal, isto é, a âncora da riqueza financeira fixada no dólar, um atributo peculiar que se move de maneira contraditória ao papel do dinheiro no capitalismo: atuar como forma de riqueza universal. O dólar emula a forma universal da riqueza, entregando desequilíbrios ao conjunto dos países, enquanto protege e estimula a acumulação e concentração da riqueza financeira.
As consequências recolhidas nas décadas de domínio do dólar registram uma elevação sem freios do risco sistêmico nos mercados financeiros, causados, inclusive, pela desregulamentação das atividades financeiras como patrocínio ao império da riqueza privada que tem no dólar sua fortaleza; e o endividamento galopante dos Estados Nacionais para sustentar a valorização privada da riqueza, tomando como contrapartida o ajuste de contas realizado pelo tesouro norte-americano que sustenta a liquidez exigida pelos mercados financeiros emitindo dívida sem nenhum instrumento concreto que regule o trânsito da riqueza financeira para o circuito produtivo.
Nos acostumamos a designar o endividamento norte-americano como sendo perfeitamente elástico à demanda por moeda dos agentes privados e ao superávit realizado pelas economias industrialmente mais competitivas – como a China. Isto é, no entanto, uma meia verdade.
De fato, não há limites para a expansão da dívida pública norte-americana como resposta aos anseios da riqueza privada, assim como, o superávit financeiro dos EUA com o resto do mundo permite que o déficit em transações correntes (crescente desde 1973) persista sem constrangimento. Receio, entretanto, que a questão não seja esta.
Não se trata apenas de emitir dívida para ancorar a valorização da riqueza financeira, oferecendo a salvaguarda par excellence do dólar. Algo que as rodadas de relaxamento monetário pós-crise de 2008 provaram é que a emissão de dívida pelos EUA funciona como a força gravitacional que segura o risco sistêmico envolvendo a riqueza patrimonial dos agentes capitalistas, incluindo bancos, empresas e outras instituições financeiras.
O grande dilema está na capacidade de os EUA continuarem a financiar ativamente a demanda do mundo, papel que desempenha desde pós-guerra e que, cada vez mais, tem sido desafiado pela China.
Contudo, restam dúvidas sobre a força de internacionalização do Remimbi, a moeda chinesa. A integração regional asiática, a aliança dos Brics e as iniciativas de financiamento para países com dificuldades externas de fato têm impulsionado uma maior aceitação da moeda chinesa. Entretanto, a posição monetária chinesa ainda está muito atrás do dólar, ou mesmo do Euro.
O que deve ser olhado com mais atenção é a atuação da China como substituta aos mecanismos tradicionais de financiamento externo dos países, sejam aqueles em dificuldades e risco de default externo, sejam aqueles que promovem a aceleração de seu desenvolvimento. O modelo chinês de auxílio externo utiliza o dólar para apoiar outros países sem condicioná-los às regras convencionais de austeridade, privatizações, reformas liberalizantes etc.
Ou seja: o modelo chinês não condiciona o financiamento externo aos humores dos mercados financeiros, prontos para forçar a percepção de risco sobre os títulos públicos dos países endividados quando seus requerimentos particulares não são atendidos.
Ao contrário: a China aposta no desenvolvimento mútuo, o mesmo movimento que os EUA realizaram no pós-guerra até que o império do dólar entronasse os agentes financeiros como deuses do destino do mundo.
O recente questionamento da China ao endividamento norte-americano é uma sinalização contrária aos dogmas que dominaram as últimas décadas: ajustes que destroem as estratégias de desenvolvimento e subserviência aos mercados. Abraçado aos dogmas está o dólar. As crenças se enraízam com a mesma facilidade que suas imperfeições invocam os traumas da superação, diria Hegel ao espírito da história.
O endividamento norte-americano prossegue no caminho da elasticidade eterna, enquanto a riqueza social se concentra nos balance sheets das instituições financeiras. Esse caminho leva à crise e à desvalorização da riqueza financeira, uma rota que já se adianta a passos largos.
Enquanto isso, restam dúvidas se o dólar é capaz de sustentar um novo salvamento da riqueza financeira em escala global sem que, de duas a uma: ou a dívida pública norte-americana entre em colapso em seu próprio movimento de expansão, rompendo a âncora da riqueza privada, ou a China assuma a posição de emprestador em última instância para países e instituições financeiras.
Lembremos da história das hegemonias. A inglesa sucumbiu junto ao domínio da libra, dando espaço aos EUA e ao dólar. A história não se repete, mas rima, diria Mark Twain.
Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).
Crédito da foto da página inicial: Marcello Casal Jr./Agência Brasil
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