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O fim da reforma agrária?

Uma das críticas mais contundentes à política de reforma agrária no Brasil é a da perenização da reforma agrária no Brasil. O país, de fato, nunca passou por um processo de mudança na estrutura fundiária que alterasse a concentração fundiária do país. Mesmo no governo Lula, quando se estabeleceu o recorde de assentamento de famílias, isso ocorreu majoritariamente por meio da destinação de terras públicas, em sua maioria a populações que já viviam nas áreas. Um processo importante de regularização fundiária, mas que não deve ser chamado de reforma agrária.

Ainda que com todas as limitações da era petista no governo e seus escassos avanços, sendo o primeiro governo Dilma o que apresentou os piores números da reforma agrária desde o desmonte total do governo Collor, surgiram, no segundo mandato da ex-presidenta, algumas sinalizações de que algo poderia ser diferente. A gestão liderada pelo ministro Patrus Ananias não apenas verbalizou a necessidade de recolocar a reforma agrária na pauta, mas avançou num inédito acordo entre o INCRA e a Receita Federal com vistas à destinação das terras dos grandes devedores para o assentamento de trabalhadoras e trabalhadores rurais.

As metas do governo eram, ao mesmo tempo, tímidas e ambiciosas. Tímidas porque o objetivo declarado eram apenas as mais de cem mil famílias acampadas, ignorando os dados do censo agropecuário do IBGE que apontaram um contingente de 809.811 produtores rurais sem terra e 1.049.000 produtores com minifúndios inferiores a dois hectares. Mais que o público ligado aos movimentos sociais, essa seria a demanda mínima existente hoje no país onde menos de 1% dos estabelecimentos rurais concentram 45% de toda a área rural.

Por outro lado, ambiciosa porque ao mesmo tempo firmava o compromisso que nenhum governo conseguiu cumprir de pacificar os conflitos no campo, escolhendo o lado do povo trabalhador e eliminando os acampamentos com a criação de assentamentos. E pretendia cumprir este objetivo com a democratização do acesso à terra por meio da adjudicação das propriedades rurais dos grandes devedores.

Os latifundiários são um dos principais grupos de devedores da União. Há mais de 4 mil pessoas físicas e jurídicas proprietárias de terras com dívidas acima de R$ 50 milhões. Entre os 50 maiores devedores, apenas pelo nome da pessoa jurídica, encontramos ao menos 11 ligados ao setor agropecuário, todos com dívida individual superior a R$ 1,48 bilhão. O governo Dilma poderia não resolver a questão, como dificilmente resolveria diante da política de conciliação então vigente no governo, mas a porteira que estava sendo aberta transformar-se-ia num ponto de não retorno.

O Brasil possui 15% de população rural (ou 35% de acordo com os conceitos da nova ruralidade), a agricultura familiar ocupa 24,3% da área agricultável, produz 70% dos alimentos consumidos e emprega 74,4% dos trabalhadores rurais. Entretanto, são os ruralistas que possuem a maior bancada da Câmara dos Deputados, capazes, inclusive, de constituir facilmente uma maioria parlamentar. Maioria esta que foi indispensável para o golpe no qual a bancada ruralista foi daquelas que teve uma das atuações mais coesas, tanto que vem sendo sistematicamente recompensada no governo ilegítimo.

João Goulart caiu pouco depois do seu discurso na Central do Brasil no qual garantiu que tiraria a reforma agrária do papel. Não parece coincidência que quando Jango e Dilma tentaram avançar em algo no sentido de remover qualquer parcela, por menor que seja, do poder destes setores atrasados, tenham sofrido um golpe. Não que isso tenha sido suficiente em ambos os casos, mas a insatisfação dos coronéis de ontem hoje travestidos de ruralistas do agronegócio sempre foi uma condição necessária ao golpe.

O governo golpista é também um governo dos setores mais atrasados do campo brasileiro, atrasado e sem nenhum compromisso com a soberania e o desenvolvimento nacional. A estrondosa vitória dos novos coronéis da República Velha vai aparecendo pouco a pouco na agenda do governo golpista. Em julho de 2016, Michel Temer assumiu diversos compromissos com a Frente Parlamentar da Agropecuária, o nome oficial da bancada ruralista. Entre os acordos foi acertada a revisão de diversas políticas públicas, como licenciamento ambiental, a demarcação de terras indígenas e a regulação da compra de terras por estrangeiros.

O processo de aquisição de terras por estrangeiros é regulado pela Lei 5.709/1971 que, reforçado por parecer da AGU de 2010, impõe limites ao que os estrangeiros podem adquirir. O argumento do ministro da Fazenda para a liberação das restrições se deve a um suposto aumento nos investimentos: “O Brasil precisa de crescimento e de investimento. O agronegócio foi a área que mais cresceu em janeiro. Temos que investir, gerar mais emprego”. Se é uma área que já vem crescendo, segundo as palavras do próprio ministro, não parece ser uma área que precise de investimentos estrangeiros.

O ministro, na verdade um funcionário do Banco de Boston (afinal, ele recebe de aposentadoria do banco mais do que do governo brasileiro de salário), tem interesses diretos no setor. Uma rápida pesquisa no Google mostra as relações do mandatário da Fazenda com a J&F Participações, controladora da JBS, que aparece não apenas na recente operação da polícia federal, Carne Fraca, como também lidera a lista dos sonegadores da previdência que o ministro tanto anseia reformar. Não seria surpresa se a regulamentação da aquisição de terras por estrangeiros pavimentasse uma conjugação dos interesses de Henrique.

Outra medida do governo golpista que é a menina dos olhos da bancada ruralista é a Medida Provisória (MP) 759/2016, que afeta não apenas o campo, mas também o processo de regularização fundiária urbana. Diversas entidades lançaram uma Carta ao Brasil apontando os riscos e retrocessos da MP (leia a íntegra aqui ). Destes, destacamos: a privatização em massa e, na surdina, do patrimônio da União; a anistia a desmatadores e grileiros na Amazônia; a ameaça à Política Nacional de Reforma Agrária; e a financeirização da terra urbana e rural.

Em última instância a medida regulariza o assalto às terras públicas, o grilo e reconcentração ilegal de áreas reformadas, neste último caso sem sequer ter dado às famílias assentadas a estrutura, crédito e assistência técnica mínimos para que pudessem alcançar sua independência.

Outra questão que merece destaque, embora pontual, é uma recente sindicância aberta pela presidência do INCRA para investigar processo de regularização fundiária do território quilombola de Morro Alto, localizado nos municípios de Osório e Maquiné, no Rio Grande do Sul. Uma sindicância que ocorreu em razão de denúncia do deputado Alceu Moreira (PMDB/RS), um dos principais líderes da bancada ruralista. Há diversas ilegalidades na forma como foi instaurada a sindicância, mas não é esse ponto. Trata-se de um processo que seguiu rigorosamente todos os trâmites previstos nas normativas vigentes no INCRA, e o que está em questão é um processo de intimidação a todos os servidores do órgão que trabalham com a regularização de territórios quilombolas.

Como corolário deste processo, os ruralistas, que controlam o Congresso, também saem ganhando com a reforma da previdência. Com a necessidade de comprovação de tempo de contribuição que, na prática, extingue a aposentadoria rural, haverá um incentivo ao trabalho assalariado no campo. Deste modo, o agricultor familiar e o assentado da reforma agrária terão desincentivos a trabalhar em suas propriedades, preferindo empregos que assegurem o tempo de contribuição necessário a aposentadoria. De forma cruel, se promove a desestruturação das cadeias ligadas a reforma agrária e a agricultura familiar em favor do agronegócio empresarial.

O avanço destes objetivos pretende tirar a razão de ser do INCRA e, consequentemente, de qualquer meio de se efetivar uma política de democratização do acesso à terra. O governo Temer parece disposto a acabar com essa história de reforma agrária perene, enterrando de vez qualquer ideia de que um dia ela aconteça. Resta saber, como reagirão os movimentos sociais do campo?

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