O centro político-ideológico se vê novamente desafiado a reinventar-se. A crise também desafia a esquerda e direita, mas o foco do artigo é o centrismo: até que ponto e como, hoje esvaziado no meio da polarização política, ele pode voltar a encorpar-se?
Uma definição estática de centro é a seguinte: a posição no espectro ideológico que defende um capitalismo mitigado por políticas sociais e a democracia representativa (de baixa intensidade, com participação exclusivamente eleitoral). Mas, na dinâmica internacional de polarização de classes, pós-crise de 2008, alimentada por forças conservadoras em vários países, o centro tem migrado para a direita. O que fará o que dele resta?
Do naufrágio do governo Sarney ao Plano Real, o centro enfraqueceu-se. Em 1993, esquerda (Lula) e direita (Maluf) lideravam as pesquisas de intenção de voto para a eleição presidencial que, em 1994, resultou na impactante vitória de Fernando Henrique Cardoso, líder da estabilização da moeda. Tal feito estruturou o sistema partidário, posicionando o espectro ideológico em torno do centro. Os governos federais tucanos apoiaram-se na governabilidade da centro-direita (PSDB-PFL-PTB, depois também PMDB), os governos petistas, até Dilma I, na da centro-esquerda (PT-PMDB).
O quadro mudou desde 2015-2016. Diante da adesão da maioria dos partidos – sobretudo MDB, PSDB, PSD e DEM e os dois blocos parlamentares– à deposição de Dilma, decisão de legalidade muitíssimo duvidosa, e às políticas de austeridade fiscal e trabalhista, rejeitadas pela esquerda, quem é hoje o centro? Temer, Meirelles, Alckmin, Maia e Marina? Não creio. Eles e seus partidos têm apostado na terapia do Estado mínimo e, ao mesmo tempo, colocaram em xeque o princípio do sufrágio universal, senão para todos os eleitores, para um contingente grande deles, ao apoiarem a deposição presidencial.
Por outro lado, seis dos 17 deputados federais do PDT de Ciro Gomes votaram a favor da emenda do teto, cinco, do processo de impeachment e um, da reforma trabalhista. Esse partido de porte médio é o núcleo do que restou do centro ideológico hoje na Câmara, ao qual se juntam alguns deputados dispersos em vários partidos. Ele pende à esquerda. O PSB deu uns passos à direita: apoiou o impeachment, compôs a base aliada até o escândalo da delação da JBS, 18 de seus 33 deputados federais sufragaram a emenda do teto de gastos e 14 a reforma trabalhista. Além disso, não assinou o manifesto das fundações partidárias da esquerda, recém-divulgado.
Hoje o mercado é um imenso ímã, que atrai e direciona o campo de força da política para a direita, na esfera da democracia como regime e cultura cívica, no populismo jurídico punitivista e seletivo das instituições de Justiça, no conteúdo decisório ultraliberal do Estado (que inviabiliza recursos para a igualdade de oportunidades) e na capacidade de influência sobre os partidos reverentes à hegemonia dos investidores.
Os atores políticos que protagonizaram a deposição presidencial e alavancaram a investidura de Temer anteciparam ao mercado a pretensão de servi-lo. Isso foi feito pelo programa Uma Ponte para o Futuro, que organiza a coalizão partidária governista, nucleada no quarteto do Estado mínimo, MDB-PSDB-DEM-PSD. Não por acaso ou mera ironia conjuntural, mas por uma síntese entre ação e estrutura, o bloco neoliberal pode dizer à volição social-desenvolvimentista de Lula que o Estado serve ao mercado como nunca antes na história do Brasil.
Mas a dominação política resultante é instável. Conseguiu governabilidade à custa da legitimidade. Hoje a própria capacidade de impor sua agenda chegou ao limite. O engavetamento da reforma da Previdência mostra a dificuldade política interposta pelos eleitores diante do programa da coalizão entre o mercado e a direita partidária.
Com a perda de substância do centro, a direita cresceu. Até mesmo uma inusitada extrema-direita emergiu com Bolsonaro. Em entrevista recente, Fernando Haddad afirmou que “o sonho da direita é concorrer com a extrema-direita”. Nessa disputa, Bolsonaro ajuda seus parceiros a tentarem se passar por centristas, ainda que, no plano da economia, garanta fidelidade ao mercado, que teme uma eventual vitória eleitoral da centro-esquerda ou da esquerda, daí a importância de inviabilizar a candidatura de Lula. O presidenciável Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou, reforçando a ofensiva da direita para vencer a polarização: “Tenho responsabilidade de construir um projeto para que a gente não entregue o governo para partidos de esquerda”.
A reconstrução do centro requer um programa competente para a construção de um modelo econômico socialmente includente, alternativo à disciplina excludente dos mercados, e requer aliados. Diante da rejeição popular às políticas de austeridade, o futuro do centro fica à esquerda, que demanda a inclusão social negada pelas políticas da direita. Se o centro restante pende à esquerda, depende do PT e vice-versa.
Crédito da foto da página inicial: Ricardo Stuckert
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