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Foto do escritorNathan Caixeta e André Luiz Passos Santos

O Arcabouço Fiscal: entre o melhor, o pior e o possível

Atualizado: 9 de ago.


O desempenho no longo prazo na regra fiscal vai depender da transição para um modelo tributário progressivo, ou impostos proporcionais à renda e ao acúmulo de riqueza, em uma disputa com as elites. Talvez aí, como historicamente tem sido, é que a porca torça o rabo

O anúncio do Arcabouço Fiscal pela equipe do Ministério da Fazenda gerou reações diversas: para os mercadistas, faltou uma regra para a dívida; para os progressistas, flexibilizou de menos os limites colocados pelo regime anterior, o inominável Teto de Gastos; do ponto de vista político, ficou na medida entre a necessária comunicação com o mercado e um instrumento fiscal que permite gerar crescimento e proteger e incentivar a economia em tempos difíceis.


O ministro Haddad foi certeiro ao ressaltar as características da política econômica como produto da Política em seu gênero substantivo, ou da política com P maiúsculo, como já ensinou João Manuel Cardoso de Mello: a arte do possível.


Observada a correlação de forças no Congresso Nacional, e dados os efeitos do longo e profundo terrorismo econômico a que vimos sendo submetidos, uma solução de compromisso como o Regime Fiscal proposto pelo governo Lula talvez represente a saída possível para o mal ajambrado Teto de Gastos que, embora sacralizado pelo mercado, não conseguiu manter-se sobre os próprios pés nem por um só ano, desde que foi adotado como panaceia para deter os avanços do Estado “perdulário”.


Essa é a forma real da política, espaço onde são produzidos consensos entre os interesses em disputa. Não se verá satisfação completa em nenhuma parte. Não vale a pena tratar o assunto do ponto de vista partidário, da política com p minúsculo, na qual impera a rivalidade como ofício dos interesses, ou mesmo com a pureza instrumental com que muitos economistas tendem a analisar a proposta. É evidente que para todos e cada um de nós há um modelo melhor, embora o melhor de cada um seja uma miríade de proposições diferentes, até antagônicas.


Já se dizia em caixa alta na imprensa que o mercado esperava uma regra fiscal que inspirasse credibilidade. Está aí. O mecanismo de evolução dos gastos em proporção (de 70%) das receitas e uma banda de 0,6% e 2,5% para o crescimento real do gasto é perfeitamente possível. Mais: pode conferir a flexibilidade de que a política fiscal necessita em cada conjuntura econômica, mesmo que dentro de limites mais estreitos do que o desejável.


Os gatilhos de elevação do investimento quando a receita superar o limite superior e de redução da proporção de gastos em relação às receitas quando estiver abaixo do piso formam uma importante medida anticíclica. Se o gasto estiver baixo em relação à receita, o investimento acelera. Se as receitas caem, o gasto real (descontada a inflação) tem espaço para crescimento real, por pequeno que seja, preservando o horizonte de demanda e o investimento privado. E ainda defende integralmente duas conquistas recentes: o Fundeb e o piso nacional da enfermagem.


É uma evolução em relação ao Teto de Gastos, mas ainda conserva defeitos do modelo anterior. O principal é que o resultado primário deve correr atrás do resultado nominal, isto é, se a dívida pública cresce, devido ao custo fiscal dos juros altos, como ocorre hoje, a estabilização do nível da relação dívida-PIB irá requerer um crescimento mais que proporcional do PIB. Esse conjunto é difícil de equilibrar, especialmente se levada em conta a difícil conciliação entre as políticas fiscal e monetária.


O Banco Central opera no curtíssimo prazo, negociando títulos do Tesouro Nacional para levar a taxa de juros corrente ao patamar definido pela taxa básica de juros – a SELIC. O problema fica na estruturação da dívida, pois os movimentos de curto prazo dos juros pressionam o valor dos títulos de longo prazo, dificultando o financiamento do Estado e gerando uma carga fiscal que, hoje chega a 46% das despesas do governo.


A meta de inflação que o BC persegue é irrealística. Exige um esforço descomunal, com altos custos financeiros e sociais. Como a taxa de juros é instrumento quase que exclusivo para o combate à alta de preços, o BC a eleva para comprimir a demanda, e assim fazer convergir a taxa de inflação à meta excessivamente ambiciosa, mesmo que a demanda aquecida não seja a causa do surto inflacionário, como é o caso hoje. Sofrimento dobrado, com efeitos deletérios sobre o emprego e sobre a trajetória da dívida pública. Juros altos não fazem baixar os preços dos combustíveis e fertilizantes, mas acabam por exigir ainda mais malabarismos da política fiscal manietada.


Se faz necessária a criação de mecanismos de compra de títulos de longo prazo pelo governo para suavizar o impacto dos movimentos da política monetária sobre o orçamento. Essa é uma prática comum nos Bancos Centrais dos países desenvolvidos. E daí voltamos à Política.


Uma coordenação efetiva entre as políticas fiscal e monetária retira espaço de influência do mercado sobre as decisões do Banco Central, o que diminui a larga vantagem que o capital ocioso dispõe para marcar a mercado sua remuneração e pressionar pela disputa dos fundos públicos.


Não se trata de contingenciar o crescimento da economia, mas de crescer escoltando o patrimonialismo rentista que impera no Brasil. A reforma tributária e as medidas no campo industrial e tecnológico, além da reativação da política social, sinalizam para um modelo de desenvolvimento econômico com distribuição de renda. E aí se situa uma grande preocupação: o objetivo de alcançar superávits primários em tão curto prazo se apoia menos no corte das despesas já tão comprimidas, e mais na expectativa de elevação imediata das receitas. Aí é que intenção e gesto podem tomar caminhos incompatíveis.


A recente retomada parcial dos tributos sobre os combustíveis foi necessária, mas está longe de ser suficiente. A recuperação da atividade econômica em 2022, depois do longo mergulho dos últimos anos, reanimou a receita fiscal. Mas não há indícios de que um ciclo virtuoso se inicia, pelo contrário. As perspectivas econômicas para 2023 não são nada animadoras, e o crescimento do desemprego em fevereiro está aí para corroborá-lo.


Será essencial rever subsídios longamente desfrutados por setores econômicos influentes, e aqui pouco importa se tais subsídios fazem ou não sentido hoje. Assim como cumprir a promessa de campanha do presidente, de colocar os ricos no Imposto de Renda. E ainda inverter a ordem de privilégios erigida por meia dúzia de grandes conglomerados, que conseguiram impor pesadas perdas ao Erário com a esdrúxula decisão de retirar do Estado o voto qualitativo no CARF.


Essas coisas, veremos em breve, são bem mais fáceis de defender do que de fazer. A essa altura, lobbies poderosos já se puseram em marcha, jabutis brotarão em profusão nas medidas legislativas durante sua tramitação. Conceder desonerações e subsídios é bem mais fácil do que retirá-los. E, convenhamos, a estrutura tributária brasileira é fortemente apoiada em impostos regressivos desde Vargas.


O Estado desenvolvimentista contornou a feroz resistência dos donos do dinheiro a contribuir com seu justo quinhão para o desenvolvimento do país e o resgate histórico da escandalosa dívida social brasileira cobrando impostos sobre o consumo ou criando formas de tributos provisórios e reembolsáveis. Por que agora a Faria Lima não resistiria lançando mão de todos os seus canhões midiáticos e políticos?


Tão mais efetivo o modelo, quanto mais conseguirmos adestrar a centralização da riqueza, revertendo os ofícios improdutivos de extração de renda que hoje imperam na marcação do debate e do embate político. Falando especificamente da regra fiscal, seu desempenho no longo prazo vai depender da transição para um modelo tributário progressivo, ou seja: impostos proporcionais à renda e ao acúmulo de riqueza, o que reiteramos: é um grande espaço de disputa com as elites. Talvez aí, como historicamente tem sido, é que a porca torça o rabo.


Por fim, discordamos que o agrado da Faria Lima com o Arcabouço Fiscal seja uma reprise do modelo dos governos Lula I e II. O que definirá o caráter do modelo de desenvolvimento será o esforço dedicado à retomada da indústria e das proteções sociais presentes na Constituição.


O Novo Arcabouço é um passo para frente, mais tímido do que o desejável e positivo na medida do possível. Resta muito a fazer. Mãos à obra.

Crédito da foto da página inicial: Diogo Zacarias/Ministério da Fazenda


André Luiz Passos Santos é economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico pela UNICAMP e membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia.


Nathan Caixeta é economista pela FACAMP, mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).

 

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