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‘Neoliberalismo e democracia são incompatíveis’

Publicado no Instituto Humanitas Unisinos em 15-3-2017

Defensor da tese de que tanto à direita quanto à esquerda do espectro político haverá uma defesa do papel do Estado na vida social, o economista Pedro Rossi frisa que essa tendência já pode ser vista em “muitos países” diante de “um realinhamento eleitoral que valorizou os extremos do espectro político”, por conta de “um esgotamento do discurso tradicional de que o livre-mercado resolve os problemas”.


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Pedro Rossi. Crédito da foto: Vermelho.org


Na avaliação de Rossi, os futuros governos à direita ou à esquerda irão compartilhar “aspectos em comum”, como “o resgate do nacionalismo, da atuação direta do Estado no combate ao desemprego e na retomada do crescimento e o questionamento do papel do setor financeiro. As divergências, porém, são importantes: do lado direito há o resgate do Estado garantidor dos bons costumes e de uma agenda cultural conservadora; do lado esquerdo, há o Estado garantidor dos direitos sociais e redutor das desigualdades”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Rossi comenta a política econômica nacional, a qual, segundo ele, “atua em dois planos”. “No primeiro desmonta-se a capacidade do Estado de promover as políticas sociais e fragiliza-se a posição dos trabalhadores. (…) No segundo plano, desmonta-se a capacidade do Estado de induzir o crescimento e de transformar a estrutura produtiva por meio do novo regime fiscal que limita o gasto com investimento público, a privatização da gestão dos bancos públicos e da Petrobras”.

Pedro Rossi é graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre e doutor na mesma área pela Universidade de Campinas – Unicamp, onde leciona atualmente. É diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica – CECON da Unicamp, diretor da Sociedade Brasileira de Economia Política – SEP e coordenador do conselho editorial do Brasil Debate.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por quais razões as ideias neoliberais são desastrosas, segundo sua avaliação? Quando o senhor se refere a “ideias neoliberais”, acerca do que está tratando especificamente?

Pedro Rossi – O neoliberalismo está em crise nas suas várias dimensões. Nos países centrais há um esgotamento do neoliberalismo como “racionalidade social” que difunde o individualismo e a competição desenfreada entre os indivíduos, o que resulta em uma frustração generalizada no plano individual. Mas há também um fracasso das políticas econômicas neoliberais.

No Brasil, a retomada das políticas econômicas neoliberais a partir de 2015 foi um fracasso rotundo. Quanto mais o tempo passa, mais isso fica evidente. Quando Joaquim Levy assumiu, dizia-se que a volta do crescimento estava ali na esquina, que o ajuste fiscal traria de volta a confiança, mas o conjunto de políticas só fez aprofundar a crise, que se transformou na maior contração da renda da história brasileira.

Os economistas neoliberais passaram a atribuir a crise às políticas “intervencionistas” do primeiro governo Dilma. O argumento das defasagens foi usado para explicar a contração de -3,8% em 2015 e agora volta a ser usado para explicar a queda de -3,6% no PIB em 2016. Mas já são dois anos de políticas neoliberais! É o chamado oportunismo das defasagens que atribui a culpa do que acontece hoje às políticas do passado, e conforme o tempo passa, as defasagens aumentam.

Intervenção estatal

Há uma crença ideológica de que a intervenção do Estado só faz atrapalhar o crescimento, logo a redução do gasto público e as reformas neoliberais não podem ter causado a crise, por princípio. Aí os dados têm que se adaptar à crença. Mas a ideia de que tudo foi culpa do primeiro governo Dilma tem prazo de validade; fazia algum sentido em 2015, agora está se desmoralizando.

O discurso neoliberal será enterrado nas urnas em 2018, se houver eleição. A população está se cansando da ideia de que é preciso reduzir o Estado para gerar crescimento. Isso está ficando claro. Há até um certo desespero da parte de alguns economistas ortodoxos que passam a brigar com a realidade e ofender quem pensa diferente, chamando-os de desonesto, o que revela uma tendência ao autoritarismo. A mosquinha do ódio está à solta no debate econômico.

IHU On-Line – O que significa ser “antineoliberal”?

Pedro Rossi – No plano filosófico, significa questionar a mercantilização implacável de toda a sociedade, das relações sociais, assim como questionar o individualismo como elemento fundador de um pacto social baseado na luta econômica de uns contra os outros. No plano da política econômica, significa valorizar o Estado como indutor do crescimento econômico e como organizador social. A partir daí há uma ramificação entre a crítica à direita e à esquerda.

IHU On-Line – Por que na sua avaliação tanto à direita quanto à esquerda vai se retomar uma defesa do Estado? Que tipo de defesa é feita ou pode ser feita à esquerda e à direita? Há divergências ou concordâncias entre esses dois espectros?

Pedro Rossi – Em muitos países há um realinhamento eleitoral que valorizou os extremos do espectro político. Essa polarização é reflexo de um esgotamento do discurso tradicional de que o livre-mercado resolve os problemas. Apesar desse esgotamento, não está claro o que pode substituir essa forma específica de organização capitalista. Vivemos um período de transição no capitalismo internacional, assim como foram os anos 1930 e os anos 1970, mas ainda não está claro o que virá de novo.

Os aspectos em comum entre os dois polos são essencialmente o resgate do nacionalismo, da atuação direta do Estado no combate ao desemprego e na retomada do crescimento e o questionamento do papel do setor financeiro. As divergências, porém, são importantes: do lado direito há o resgate do Estado garantidor dos bons costumes e de uma agenda cultural conservadora; do lado esquerdo, há o Estado garantidor dos direitos sociais e redutor das desigualdades.

IHU On-Line – Intelectuais de diferentes matrizes teóricas divergem acerca de qual deve ser o papel do Estado na economia e na vida social. Em que aspectos é desejável que o Estado interfira na organização social e em quais não?

Pedro Rossi – Essa não é uma discussão técnica, mas essencialmente moral e ideológica. Para os neoliberais, o Estado burocrático destrói as virtudes da sociedade civil, do trabalho, do esforço pessoal, e incentiva o ócio. Da mesma forma, a segurança dada ao indivíduo em termos de emprego e proteção social reduz o seu senso de responsabilidade. Em outras palavras, a proteção social destrói os valores fundamentais do capitalismo. Nesse sentido, é preciso expor as pessoas ao risco e à concorrência.

Além disso, ao partir do princípio de que o mercado é eficiente, tem-se como consequência que a desigualdade salarial reflete a contribuição de cada um para a sociedade. Você ganha mais porque você é melhor. O mercado dá o que cada um merece. Assim, nessa concepção de justiça social, a desigualdade social é naturalizada. E o Estado não deve interferir na distribuição da renda e da riqueza. A “desobrigação do Estado” é necessária por conta da “eficiência do mercado”.

Do outro lado, há diversas visões críticas que valorizam o Estado nas suas funções de alocar e distribuir recursos. Eu penso que, sob o neoliberalismo, a desigualdade no Brasil só tende a aumentar. Se não houver mecanismos redistributivos, isso vira um barril de pólvora social. Além disso, a mercantilização dos serviços sociais, como saúde e educação, é extremamente perversa. É muito mais barato, e socialmente justo, investir em saúde pública e universal, do que um sistema de saúde privado, por exemplo. Essa garantia do caráter público e universal dos serviços sociais básicos é uma atribuição do Estado prevista pela Constituição de 1988, que está sendo atropelada.

IHU On-Line – O senhor menciona que internacionalmente já tem acontecido uma defesa da intervenção estatal nos governos, a exemplo do governo Trump, e do próprio Brexit. Pode nos explicar como isso tem acontecido em relação a esses dois casos?

Pedro Rossi – É simbólico o que aconteceu nos EUA e no Reino Unido. Esses dois países foram responsáveis pela difusão da ideologia neoliberal nos governos Ronald Reagan e Margaret Thatcher. Reagan dizia que “o governo não é a solução, é o problema”, e Thatcher, que “não existe sociedade, apenas famílias e indivíduos”. Agora, nesses dois países há uma enorme insatisfação social, uma desigualdade enorme, empregos de péssima qualidade, uma insegurança generalizada quanto à estabilidade financeira familiar, quanto à possibilidade de acesso aos serviços sociais etc. Diante disso, há uma volta do nacionalismo e um apelo para uma atuação mais forte dos governos para trazer de volta o emprego, limitar a entrada de imigrantes etc.

IHU On-Line – No Brasil, que partidos ou futuro candidato parece adotar um discurso favorável à intervenção estatal, à esquerda e à direita?

Pedro Rossi – Do lado esquerdo do espectro político há candidatos que perceberam que o discurso dominante está fadado ao fracasso. Lula talvez seja o candidato mais apto a equacionar a crise econômica sem grandes rupturas, conciliando interesses de classe. Mas pode ganhar força uma candidatura de esquerda de fora do sistema político tradicional. Quanto pior a crise econômica e social, mais cresce o sentimento de que precisamos de uma fratura exposta, uma ruptura que seja ao mesmo tempo profunda e democrática.

Do outro lado, no debate eleitoral, dificilmente alguém vai defender aumentar a dose do remédio: reduzir mais gastos públicos, retirar mais direitos sociais e privatizar as Estatais etc. Esse discurso não ganha eleição. O candidato à direita terá que se descolar de Temer e das ideias neoliberais. Este deve apresentar soluções concretas para o problema do desemprego.

Já a continuidade das políticas neoliberais depende de uma escalada do autoritarismo. Assim, a solução pela direita pode ser autoritária. Dependendo da força das candidaturas de esquerda, em 2018 pode não haver eleições. Não seria nada inesperado diante do que já aconteceu, afinal, as políticas econômicas neoliberais voltam ao Brasil por meio de um estelionato eleitoral e se aprofundaram por meio de um golpe de Estado. A PEC do novo regime fiscal não seria ratificada nas urnas, tampouco a reforma trabalhista e da previdência. Neoliberalismo e democracia são incompatíveis.

IHU On-Line – No Brasil há uma ideia geral de que a atual crise é consequência apenas do ajuste fiscal do governo Dilma. Contudo, o senhor apontou recentemente num artigo que “os governos do PT construíram um modelo de desenvolvimento com muitos equívocos”. Diante disso, considerando a atual crise econômica e social que o país vive, é possível mensurar que “percentual da crise” pode ser atribuído ao ajuste fiscal e que “percentual” é decorrente desse modelo de desenvolvimento em parte equivocado? Como o senhor está entendendo o que está acontecendo no Brasil hoje do ponto de vista econômico e social?

Pedro Rossi – Toda crise econômica é multidimensional e carrega diversos motivos explicativos. Mas nas grandes crises da história brasileira sempre houve um fator decisivo que justifica o caráter extraordinário que as diferencia das demais crises ao longo dos ciclos econômicos. Assim, a crise dos anos 1930 foi detonada pela crise internacional. E a crise dos anos 1980 explica-se pela dívida externa brasileira. Nos 1990 o confisco das poupanças foi a principal razão para a gravidade da crise. E hoje? Vivemos a crise da austeridade e do desmonte do Estado.

Em 2015, a economia brasileira já estava fragilizada por motivos estruturais e conjunturais. Em meio a essa fragilidade o governo optou por um choque contracionista, com um forte ajuste fiscal, ajuste dos preços administrados e aumento de juros. É tudo simples e intuitivo. O crescimento depende da demanda por consumo, investimento, da demanda externa e da demanda pública. Quando a demanda privada, interna e externa, e a demanda pública se contraem ao mesmo tempo, há um agravamento da crise. O governo tratou a crise reduzindo a sua demanda, aumentando os custos básicos de energia e combustível e a taxa de juros. Foi uma tragédia. Esse tratamento de choque contribuiu para praticamente dobrar o número de desempregados entre dezembro de 2014 e dezembro de 2016. A virada neoliberal foi uma puxada de freio de mão na economia brasileira, sem ela não haveria a maior contração de renda da história.

IHU On-Line – Quais são os erros e acertos da política econômica do governo Temer para reverter a atual crise econômica?

Pedro Rossi – A política econômica do governo Temer atua em dois planos. No primeiro desmonta-se a capacidade do Estado de promover as políticas sociais e fragiliza-se a posição dos trabalhadores. Nessa direção, destacam-se o novo regime fiscal que compromete o gasto social, as reformas da previdência e trabalhista. No segundo plano, desmonta-se a capacidade do Estado de induzir o crescimento e de transformar a estrutura produtiva por meio do novo regime fiscal que limita o gasto com investimento público, a privatização da gestão dos bancos públicos e da Petrobras. É um desmonte do estado promotor de políticas sociais e indutor do crescimento. Temer está se desfazendo dos instrumentos capazes de retomar o crescimento. Esse desmonte atende a interesses, mas simultaneamente ele aprofunda a recessão, e isso tem custos eleitorais.

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