Se desde José Bonifácio a questão agrária começou a ser pautada no debate público brasileiro, o País nunca viveu um processo de democratização do acesso à terra.
Os amantes da língua portuguesa que implicam com os gerúndios, devem detestar o tema, o Brasil é o país da reforma agrária perene. Ou seja, estamos fazendo reforma agrária há décadas, mas nunca de fato tivemos uma profunda transformação da estrutura fundiária.
A constituição de 1988, apesar de seus ares democráticos em diversas áreas, na questão fundiária engessou o País nos seus 500 anos de latifúndio.
O texto constitucional restringiu a desapropriação às terras improdutivas. É importante destacar que Caio Prado Junior já colocava que as manchas de solo de pior qualidade são aquelas que acabam ficando na mão dos pequenos e médios proprietários e que a desapropriação apenas das grandes propriedades improdutivas perpetuaria este cenário.
As vantagens da agricultura familiar sobre o chamado agronegócio evidenciam a necessidade de uma política pública em prol da reforma agrária.
Diversos estudos econômicos sobre economias de escala na agricultura demonstram que a grande propriedade possui custos crescentes de escala.
Ademais, os custos de gerenciamento, logística e mão de obra, a imprevisibilidade meteorológica e a volatilidade dos preços internacionais são alguns fatores que nos permitem afirmar que o setor agrícola não é uma atividade capitalista em senso estrito.
A reforma agrária é ainda uma política que tem um viés anti-inflacionário. Por fim, a literatura econômica também é farta em demonstrar que todos os países considerados desenvolvidos passaram por processos de democratização do acesso à terra.
Aos argumentos econômicos poderíamos acrescentar ainda que uma reforma agrária poderia propiciar o enfraquecimento da bancada ruralista que, super-representada no Congresso Nacional, atrasa muitas pautas de interesse ao desenvolvimento do País.
Mas, se não faltam razões para avançar no tema, como destravar esta pauta?
A constituição veda a desapropriação das terras produtivas e não prevê nenhuma limitação, como existente em diversos países, ao tamanho das propriedades rurais. Expropriação só em caso de plantio de psicotrópicos e trabalho escravo, sendo que esta última alternativa ainda carece de regulamentação legal.
Os 500 maiores devedores da União, de acordo com os dados públicos disponibilizados pela Procuradoria da Fazenda Nacional (http://www.pgfn.fazenda.gov.br/), têm uma dívida conjunta superior a R$ 440 bilhões.
Entre os 50 maiores devedores, apenas pelo nome da pessoa jurídica, encontramos pelo menos 11 ligados ao setor agropecuário, todos com dívida individual superior a R$ 1,48 bilhão. Isto não quer dizer que os demais devedores não sejam possuidores de imóveis rurais, em realidade muitos deles o são.
O contínuo refinanciamento destas dívidas, sob condições mais favoráveis que o cidadão comum, não permite necessariamente a quitação dos débitos.
Pelo contrário, muitas vezes os devedores deixam de pagar e renegociam novamente, quando sob risco de perder algum bem. Ademais, se observarmos os negócios destes grandes devedores, veremos que seus débitos são muitas vezes impagáveis.
Apenas no Estado do Rio de Janeiro, oito usinas e uma cooperativa de usinas, devem juntas mais de R$ 22 bilhões ao Fisco. Não há programa de incentivo, refinanciamento ou plano de negócios que convença serem recuperáveis esses valores.
Saindo do campo para a cidade, as recentes ações dos movimentos sociais de trabalhadores sem teto evidenciam que os programas habitacionais do governo são insuficientes para suprir o déficit de moradias do País.
Segundo os dados da PNAD/IBGE, em 2012, o déficit habitacional no Brasil ultrapassava 5,7 milhões de pessoas.
Lembremos ainda os estudos do economista francês Thomas Piketty que, no seu livro “O capital no século 21”, demonstra através de séries históricas seculares que a desigualdade é inerente ao capitalismo.
É sempre importante ressaltar que ainda que a economia funcionasse de acordo com os preceitos do capitalismo liberal, teríamos que lidar com os resultados óbvios de uma desigualdade já na alocação inicial dos fatores.
Neste sentido, propomos a utilização da lei 4.132 de 1962 para desapropriar os bens destes grandes devedores do Governo Federal, o pagamento destas desapropriações seria abatido das dívidas existentes.
Lembremos que a referida lei assim estabelece em seu artigo 1º: “A desapropriação por interesse social será decretada para promover a justa distribuição da propriedade ou condicionar o seu uso ao bem estar social”. O texto legal prossegue sem deixar dúvidas ao associar o interesse social às questões agrária/agrícola e habitacional.
Ora, esta simples medida faria com que dívidas virtualmente impagáveis fossem transformadas em ativos para os trabalhadores rurais sem terra e urbanos sem teto.
E se por ventura alguma das propriedades rurais fosse inviável para agricultura ou numa região sem conflito fundiário e demanda por terra, poderíamos ter as terras destinadas ainda a unidades de conservação ambiental.
Poder-se-ia ainda discutir possíveis alterações na Lei de Execução Fiscal para facilitar esses procedimentos, mas em realidade depende-se apenas da caneta e da vontade de quem ocupa a Presidência.
No fim, devemos resgatar as palavras do Papa Francisco: “Digamos juntos, de coração: nenhuma família sem casa, nenhum camponês sem terra, nenhum trabalhador sem direitos, nenhuma pessoa sem a dignidade que o trabalho dá”.
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