Estudo revela que a comunicação do presidente ignorou as orientações da OMS e do Ministério da Saúde e minimizou a gravidade da pandemia. Essa negligência foi associada a uma falta de ação efetiva para proteger a saúde pública
Publicado pelo Jornal da USP
Se você viveu a pandemia de covid-19 no Brasil, soube das lives do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro de alguma forma. Famosas pelas polêmicas declarações contra o isolamento social, a favor de tratamentos sem comprovação científica para a doença e ataques a instituições científicas, políticos e organizações transacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS), as lives foram objeto de análise da pesquisadora Mariana Varella em sua dissertação na Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP.
A estratégia de comunicação do então mandatário, marcada por um tom informal e combativo, foi alinhada com práticas populistas de extrema direita, destacada pela defesa de princípios conservadores e o antagonismo a autoridades, mídia e instituições científicas.
A análise de Mariana Varella sugere que essa abordagem contribuiu para a disseminação do vírus no Brasil, o que impactou negativamente a gestão da crise sanitária. “O presidente da República estava na contramão de tudo que se fala e conhece sobre comunicação de risco”, aponta a pesquisadora.
Além desse controle discursivo, com o uso de redes sociais como meio principal de comunicação do Governo Federal, ela também avalia que “ele organizou uma comunicação feita para os seus seguidores e colaboradores, para quem já gostava dele”.
Essa postura é contrária às recomendações da OMS para comunicação de risco (comunicação que visa passar riscos e certezas em momentos de crises sanitárias), pois essa deve ser direcionada a todos.
Os principais elementos dos conteúdos
Ao utilizar a técnica de análise de conteúdos de Laurence Bardin, uma das maiores referências para esse modelo de investigação e professora-assistente de Psicologia na Universidade de Paris V, a pesquisadora esquematizou três categorias analíticas: negligência, desinformação e uso político. A análise revelou que a comunicação do presidente frequentemente ignorou as orientações da OMS e do Ministério da Saúde, e minimizava a gravidade da pandemia. Essa negligência foi associada a uma falta de ação efetiva para proteger a saúde pública.
A desinformação, especialmente sobre supostos tratamentos para covid-19, como a hidroxicloroquina, não só confundiu a população, mas também contribuiu para a disseminação de teorias da conspiração e polarizou o debate público.
“A disseminação de desinformação e a mobilização de grupos foram sempre feitas com a ideia de que uma elite está atacando a população. Essa elite não é apenas socioeconômica, mas também intelectual, acadêmica, científica, sendo retratada como inimiga dos interesses populares”, detalha Mariana.
A pesquisa evidenciou que o presidente também utilizou a pandemia como uma oportunidade para reforçar sua imagem política e mobilizar apoio, apresentando medidas como o auxílio emergencial para maximizar ganhos políticos e controlar a narrativa política durante a crise. Ao elucidar a questão da narrativa, ela ressalta o papel dos inimigos.
Assumindo uma postura de vítima, o ex-presidente usou um discurso carregado de ressentimento, no qual alegava ser alvo de ataques da imprensa, órgãos e de seus opositores, que ele dizia serem pertencentes à esquerda.
“Ele rotulava diversas figuras e instituições como de esquerda, incluindo Doria, seu próprio Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, a OMS, a rede Globo, usando essa narrativa para reforçar seu discurso”, detalha.
Desafios da comunicação em crise sanitária
O estudo expõe a necessidade de se praticar uma comunicação de risco mais robusta e baseada na importância de estratégias eficazes em emergências de saúde pública, para evitar os erros observados durante a pandemia.
A politização das ações de saúde pública dificultou a implementação de medidas eficazes e a adesão da população às recomendações. Para a pesquisadora, futuras estratégias de comunicação em saúde devem ser mais integradas e fundamentadas em evidências científicas.
Mariana, que também é editora-chefe do portal Dráuzio Varella e cientista social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, ainda alerta que o grande desafio é que figuras da extrema direita “conseguem hoje a mobilização que querem. Então, se tiverem por algum motivo e interesse em disseminar desinformação em uma grave crise sanitária, eles têm muito mais vantagem. Nós [a mídia e outros órgãos oficiais de comunicação] ‘enxugamos gelo’”.
Ela, que realizou o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Ambiente, Saúde e Sustentabilidade da FSP, explica também que os conteúdos produzidos que respondem às desinformações “não vão ser lidos. Então não adianta desmentir aquilo, porque aquelas pessoas já estão acreditando nisso, ele [Bolsonaro] já desacreditou a informação”.
Assim, alerta que “temos que estudar melhor e entender as estratégias de comunicação desses grupos para conseguir combatê-los”. A cientista social completa que, apesar de figuras de extrema direita ‘surfarem’ melhor nas redes sociais, “a redes podem ser uma ferramenta muito importante para a comunicação de risco, inclusive a OMS reconhece isso”.
Texto: Jean Silva (estagiário sob orientação de Luiza Caires); arte: Diego Facundini (estagiário sob supervisão de Moisés Dorado).
Crédito da foto da página inicial: Grafites de rua da Vila Madalena/Nara Quental.
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