Não se trata de fenômeno novo uma chamada “crise de pensamento” que, de tempos em tempos, caracteriza a subjetividade intelectual/acadêmica. A percepção do caráter cíclico deste fenômeno pode ser observada já no final do século 19, quando o capitalismo já havia deixado de ser algo progressista para ser alimento de um “irracionalismo filosófico”. O avanço deste fenômeno faz-se sentir primeiramente na Alemanha onde a tradição de sua filosofia clássica (uma das fontes do marxismo) fora substituída pelo irracionalismo já perceptível na geopolítica imperialista de Ratzel, porém de forma mais acentuada nas obras de Heidegger, Spengler e Jünger. Não seria exagero colocar a reação marginalista na economia, no último quartel do século 19, como outra manifestação deste mesmo fenômeno.
O capitalismo financeirizado desde a década de 1970 e acelerado com a contrarrevolução neoliberal dos anos de 1990 tem impulsionado uma nova onda de “crise de pensamento” e de mediocridade intelectual via padronização (americanização) dos critérios de avaliação de produção de conhecimento, vide os sistemas Capes/CNPq. Já o pós-crise financeira de 2009 abre outra vaga de irracionalismo filosófico sob o acicate de formas nada triviais, entre elas o niilismo e o “revisionismo histórico”.
O último caso (“revisionismo histórico”) atinge diretamente até intelectuais sérios e outros ditos “progressistas”. Na mídia, Gregório Duvivier está na dianteira deste processo ao não perder tempo em desqualificar valores históricos da esquerda tradicional. Espero que Gregório não se diminua a ponto de se tornar um novo Rasputin, nem tampouco um Paulo Francis. Evidentemente que não se trata do caso do professor Fernando Nogueira da Costa que, em artigo recente (“Revisionismo e evolução sistêmica”) adianta um desnecessário acerto de contas com o marxismo, alguns de seus princípios e a experiência soviética.
O professor Fernando Nogueira da Costa tece uma série de comentários, a meu ver sem nenhuma historicidade. Por exemplo, a “má experiência soviética” como o “primeiro modelo totalitário de direção de Estado sobre todas as atividades econômicas”.
Não sei de onde o professor Fernando tira essas conclusões. Evidente que o termo “totalitário” (ou “totalitarismo”) cunhado de forma pobre por Hanna Arendt não somente coloca no mesmo saco o nazismo e o socialismo como não separa o “totalitarismo” do colonialismo e do imperialismo; da luta dos países colonizados contra a escravidão colonial e imperialista. Ou a batalha de Stalingrado não colocou frente a frente um país cujo objetivo primário era o de colonizar e exterminar povos inteiros e outro cujo exemplo foi fundamental aos processos de libertação colonial e de emancipação social dos negros e mulheres dos EUA? Honestamente, o discurso sobre a origem do totalitarismo, longe de apontar o dedo aos verdadeiros algozes (a fusão da indústria com a grande finança – o imperialismo e o nazismo), lança desonra, atingindo suas vítimas (povos colonizados) e seus defensores históricos (URSS e República Popular da China)
Sobre a “má experiência soviética” e os questionamentos sobre a “unilateralidade da concepção materialista da história” e os “estágios inapeláveis”, Fernando Nogueira não sai do senso comum. Por exemplo, omite que a URSS foi a primeira experiência moderna e humana de planificação bem-sucedida da economia, algo que Keynes tenta fingir que não sabe, mas não consegue escapar. Esta planificação e “má experiência” foram capazes de construir toda uma base material em menos de 20 anos pronta de derrotar a, desde então, maior máquina de guerra da história, ser pioneira em lançar seres vivos ao espaço e atingir os maiores patamares de produção cientifica até então vistas.
Particularmente não acredito em premissas como a da “total produção de fatores”, muito menos que em uma economia de mercado a capacidade utilizada está sempre na casa dos 100%. Mas também não acredito que os seis mil tanques que saíram de Moscou rumo a Berlim caíram do céu, nem tampouco que um suposto “planejamento indicativo cepalino” tenha baixado em algum terreiro, muito menos sobre os exércitos de blindados que bateram os nazistas em Minsky, por exemplo.
Faz-se necessário apontar que o processo de acumulação, capitalista ou socialista, não é resultante de preços econômicos no lugar, de perfeitos ciclos onde os elementos da demanda agregada vão se substituindo em meio a reformas institucionais capazes de desatar os pontos de estrangulamento desta ou daquela economia. O “modelo soviético”, como tudo, tem historicidade. Ou seja, funcionou durante um tempo enquanto que por outros as contradições de uma dinâmica de acumulação centrada nas relações desiguais entre campo e cidade deram seus primeiros sinais de esgotamento. É mais producente mostrar ao leitor que esta escolha (“acumulação centrada nas relações desiguais entre campo e cidade”) foi um imperativo da realidade onde a URSS passou décadas a fio isolada, bloqueada e ameaçada e que após a 2ª Guerra Mundial esse cerco se transformou em 3ª Guerra Mundial, levando o fim das primeiras experiências de estratégia socializante.
Seria desnecessário afirmar em seu artigo que as primeiras experiências capitalistas (Gênova e Veneza) sucumbiram ante o poderoso cerco feudal e que somente alguns séculos depois o capitalismo consegue se impor ao mundo. Para sorte nossa que antes do que muitos imaginavam o marxismo continua vivo na presente experiência chinesa, com direito a mais de US$ 500 milhões em investimentos em propaganda em meio aos festejos pelos 200 anos do nascimento de Marx.
O marxismo não é uma bíblia, os chineses sabem muito bem disso. O que me leva a dar uma ponta de razão ao apontamento de nosso professor sobre a validade das Teorias da Mais-Valia, mas sem antes perceber que a realidade e o capitalismo estão em pleno movimento. Já não é de hoje que se intenta transformar Marx ou em um “ricardiano menor” ou em um mero “pensador da questão social”. Para isso utilizam-se sobremaneira, como o próprio professor Fernando, da crítica à “teoria marxista dos estágios inapeláveis” (ou sequência dos modos de produção).
Em nenhum momento Marx tratou a sequência dos modos de produção como “estágios inapeláveis”. Não são poucas as passagens em que ele admite abertamente o surgimento de retrocessos e apostasias. Nem tampouco trabalhou de forma definitiva a categoria de “modo de produção”, lançando apenas suas vigas mestras e a possibilidade de utilização de variados níveis de abstração inerentes à (sob um ponto de vista particular) categoria de fronteira das ciências sociais e humanas. Refiro-me à categoria de formação econômico-social. Foi utilizando-se desta sofisticada categoria, que escapa a 90% dos cientistas sociais brasileiros, que Marx precocemente via, por exemplo, no estudo dos modos de produção asiático e germânico a possibilidade de combinação de modos de produção não coetâneos, mas não contemporâneos em uma mesma formação econômico-social.
Ao caso brasileiro, Ignacio Rangel – o maior pensador brasileiro do século 20 – foi pioneiro em diagnosticar esta possibilidade de combinação de modos de produção em uma mesma formação econômico-social, gerando assim “modos de produção complexos”, a exemplo das “dualidades brasileiras”. Isso possibilitou que Rangel não caísse em armadilhas conceituais caras aos estruturalistas (“agricultura de baixa produtividade como barreira ao processo de industrialização”, “processo de desenvolvimento como um salto de um ponto de equilíbrio a outro ponto de equilíbrio” etc.). Rangel sabia que não fora o mercado o criador do capitalismo e sim seu oposto (daí o desenvolvimento urbano pautar a agricultura) e que o planejamento é a ciência (e arte) que possibilita o economista a percepção dos desequilíbrios presentes e futuros, sendo tais desequilíbrios a própria razão de ser do próprio desenvolvimento humano e social.
Ao invés das críticas de superfície colocadas por Fernando Nogueira da Costa, seria muito mais frutífero – antes de condenar o direito à rebelião social como algo “antidemocrático” em prol de um gradualismo que as próprias revoluções burguesas negam – perceber a dinâmica das diferentes formações econômico-sociais existentes no mundo (capitalismo e “socialismo de mercado”).
Por exemplo, o que tais formações econômico-sociais têm em comum? A produção voltada para a troca? A financeirização como dinâmica de acumulação? O desenvolvimento/crescimento do macro-setor não produtivo da economia (infraestruturas sociais, por exemplo) em detrimento relativo do macro-setor produtivo? Ao caso da China Socialista, será que a ocorrência e a regularidade de ciclos decenais de inovações institucionais são um fenômeno de alta relevância à explicação de seu crescimento econômico, onde de um lado percebe-se o crescimento qualitativo do papel do Estado, de outro o crescimento quantitativo do setor privado, ancilar à grande propriedade socialista?
Trata-se de questões de relevo a serem respondidas aos interessados no futuro do capitalismo e do socialismo em detrimento de visões que remetem ao socialismo utópico francês anexas à visão do professor Fernando da superação do capitalismo por “formas comunitárias e cooperativas de produção como forma de substituir a economia de mercado”.
Ora, o pós-oligopólio/monopólio é o socialismo e a superação da economia de mercado se dará por novas e superiores formas de planificação econômica já sendo postas em teste pelos chineses. Por fim, a democracia, longe de ser um “valor universal” (o único valor universal é o direito à vida), deve estar baseada na abundância. Nunca na escassez e em relações sociais de produção (barbárie) correspondentes a este estágio de desenvolvimento.
Crédito da foto da página inicial: Gerard Julien via Getty Images/Huffpost
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