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Fantasma da dívida

No quarto capítulo do livro Fernando Nogueira da Costa. O Trabalho: Capital Acumulado (Blog Cidadania & Cultura; julho 2020), voltei ao debate brasileiro em torno do financiamento monetário do déficit fiscal. Nós, classificados como “economistas heterodoxos”, fundamentados na MMT (Teoria Moderna da Moeda), levantamos a hipótese de ser a melhor solução para enfrentar os problemas socioeconômicos, gerados pela crise sistêmica.

Não provocaria inflação, porque estamos em uma Grande Depressão Deflacionária. Haveria o risco político de o Poder Executivo abusar do recurso para obter sua reeleição, além do risco cambial de depreciação da moeda nacional com fuga para o dólar. Mas, devido ao afrouxamento monetário norte-americano, sua moeda está se depreciando em todo o mundo. Os ativos especulativos preferenciais estão sendo ações e ouro.

O risco fiscal de insolvência governamental no pagamento dos compromissos financeiros é sempre alarmado pelos economistas ortodoxos como contraponto aos nossos argumentos. Daí se desdobraria o risco cambial de dolarização da reserva de valor e da unidade de conta brasileira, um passo para volta do fantasma do passado: ameaça de hiperinflação.

A tabela abaixo, divulgada pelo Banco Central do Brasil (e reelaborada por mim), dá uma visão realista – e não fantasmagórica – da Dívida Líquida (DLSP) e Bruta (DBGG) do Governo Geral: este agrega os três níveis governamentais e exclui o Banco Central e as empresas estatais. Está em grande elevação, porque foram quase 10 pontos percentuais no primeiro semestre do ano corrente: de 75,8% para 85,5% do PIB. Mas, de seus principais componentes, emerge um problema descontrolado ou intratável? Não.

A DBGG – 88% interna e 12% externa – exclui dívida mobiliária na carteira do Bacen e inclui operações compromissadas (23% do total ou 19,3% do PIB ao crescer 6,2 pp no primeiro semestre) do Banco Central. A Nota Técnica publicada na Nota para Imprensa do dia 27 de fevereiro de 2008 fornece informações fundamentais para entendimento de “o que é quase ¼ da dívida bruta”.

Na ocasião, dentre os indicadores de estoque, o mais utilizado era, sem dúvida, a Dívida Líquida do Setor Público (DLSP). De forma secundária, utilizava-se o indicador Dívida Bruta do Governo Geral (DBGG). A DLSP inclui o balanceamento de ativos e passivos financeiros de todo o setor público, enquanto a DBGG possui escopo mais limitado, com menor abrangência dos entes públicos.

Hoje, até o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, quer convencer os investidores a olhar a DLSP como o principal indicador da solvência fiscal do país, no lugar da DBGG. A primeira é bem menor (58,1% do PIB) se comparada à segunda (85,5% do PIB), sobretudo, porque a DLSP desconta a Dívida Líquida do Banco Central. Logo, abate as reservas internacionais (US$ 348,8 bilhões) dos passivos dos governos. O PIB brasileiro em dólar estava avaliado, antes da atual crise, em US$ 1.839,8 bilhões. Agora é estimado em US$ 1.690. Neste caso, as reservas cambiais representam 1/5 do PIB.

A DBGG ignora essas reservas internacionais, um ativo de qualidade e muito líquido. É como olhar para o balanço de uma empresa apenas pelo lado dos passivos, sem considerar os ativos, ou seja, as distintas formas de manutenção de riqueza.

Não aparecia na DLSP os “empréstimos perpétuos” (IHCD) e os créditos concedidos pelo Tesouro Nacional às instituições financeiras oficiais. Propiciaram crédito à infraestrutura, levando a taxa de investimento de 2010 a 2014 à média de 21% do PIB e sustentando o crescimento econômico, o emprego e a arrecadação fiscal no período. Eles são cancelados na DLSP por serem créditos do próprio Tesouro com seus bancos. Isso não ocorre na DBGG, mas hoje representam apenas 4% dela – ou 3,1% do PIB.

Dado o nível reduzido de dívida externa pública, e considerando o nível de reservas internacionais, uma depreciação cambial terá um impacto positivo na dinâmica da dívida. As elasticidades da DLSP e da DBGG a variações na taxa de câmbio e na taxa de juros, no mês de junho de 2020, mostram impactos diferenciados. Desvalorização de 1% na taxa de câmbio provoca queda de -0,17 p.p. PIB na DLSP e aumento de 0,11 p.p. PIB na DBGG. Redução de 1 p.p. na taxa Selic é mais impactante: queda de -0,51 p.p. na DLSP e de -0,48 p.p. na DBGG. Um índice de preço estável não impacta essas dívidas.

O maior fator condicionante na DBGG era os juros nominais: aumento de 5,9% PIB em 2018, 5,6% em 2019. Caiu para 1,6% PIB em abril, 1,9% em maio e 2,2% em junho de 2020. Enquanto isso, as emissões líquidas de dívida bruta nos últimos dois anos tiveram impacto negativo: -0,5% em 2018 e -2,7% em 2019. No ano corrente, passaram a elevar o estoque: +1,2% do PIB em abril, +2,5% do PIB em maio e +5,3% do PIB em junho.

Esses são os dois maiores fatores condicionantes da DBGG. Em contraponto, o efeito crescimento nominal do PIB provocou queda da relação com DBGG em 2018 (-3,3 p.p. do PIB) e (-3,9 p.p. do PIB) em 2019. Com a Grande Depressão de 2020, passou a elevar a relação. Impactou em +0,7 p.p. em junho, quando a variação acumulada da DBGG no ano atingiu 9,7 p.p. do PIB. Dedução: para contrabalançar o aumento das emissões líquidas de dívida bruta são necessários uma política monetária expansiva e um programa de retomada de crescimento do PIB, sustentado em longo prazo.

A antiga metodologia de cálculo da DBGG foi definida quando o Banco Central estava autorizado a emitir títulos de sua responsabilidade para a operacionalização da política monetária. Naquela circunstância, havia certa distinção entre títulos emitidos para a cobertura de déficits orçamentários e títulos emitidos para a operacionalização da política monetária.

Dessa forma, era razoável os títulos do Tesouro Nacional na carteira do Banco Central serem incluídos na DBGG, porque representavam dívida de origem fiscal. As operações de mercado aberto eram realizadas, principalmente, com títulos emitidos pela Autoridade Monetária. Considerava toda a carteira como integrante da dívida.

Em 2000, com a promulgação da Lei de Responsabilidade Fiscal, ela vedou ao Banco Central a emissão de novos títulos. Os títulos do Banco Central em mercado foram resgatados conforme a estrutura de vencimento do período, completando-se em 2006.

A execução da política monetária passou a ser realizada exclusivamente por meio de títulos de emissão do Tesouro Nacional, levando à necessidade de elevação no volume de títulos do Tesouro para fazer frente à recomposição da carteira da Autoridade Monetária. Essa recomposição se tornou indispensável para a implementação da política monetária e a manutenção da estrutura institucional associada ao sistema de metas para inflação.

Entre dezembro de 2000 e setembro de 2003, a recomposição respondeu por um aumento da DBGG equivalente a 7,8 p.p. do PIB. Em junho de 2020, os títulos livres na carteira do Banco Central, isto é, a diferença entre a dívida mobiliária na carteira do BCB e o estoque das operações compromissadas do BCB, representa 7,6% do PIB ou 9% da DBGG.

Relativamente à contabilização como dívida dos títulos de emissão do Tesouro no Banco Central, deve-se considerar a distinção entre os títulos em custódia do mercado e aqueles em custódia do Banco Central. Os papéis de propriedade da Autoridade Monetária não têm a mesma conotação de aplicação financeira como os detidos por investidores privados.

Ao contrário desses últimos, o Banco Central não adquire esses papéis como forma de remunerar suas disponibilidades. Não é de seu interesse o resgate desses títulos e suas operações com o Tesouro não interferem nas condições de mercado da dívida mobiliária. Não constituem efetivamente dívida de natureza fiscal.

Para o Banco Central demandar o resgate desses papéis, seria necessária a escolha de outros títulos, capazes de cumprir a mesma função na gestão da política monetária. Em termos teóricos, restaria como alternativa a utilização de papéis de emissão de outros entes da federação, cuja disponibilidade é insuficiente e há restrições legais para sua emissão, como parte dos programas de ajuste fiscal implementados, ou de papéis privados.

A gestão da política monetária com a utilização de papéis privados poderia distorcer as condições naturais de mercado. A magnitude dessas operações em alguns momentos supera amplamente as necessidades de financiamento de qualquer instituição no país, exceto o governo central.

Quanto ao tratamento das operações compromissadas no conceito de DBGG, deve ser considerada a estreita relação existente entre essas operações e a dívida do Tesouro. O conceito de DBGG até aqui vigente não as incorporava, porque o Banco Central podia realizá-las com títulos de sua própria emissão.

A partir do impedimento legal de emissões de títulos pelo Banco Central, passou a existir a possibilidade de redução da DBGG sem efetivo esforço fiscal. Isso poderia ocorrer na hipótese de o Tesouro deixar de rolar parcela da dívida mobiliária e o Banco Central se ver obrigado, dados os objetivos da política monetária, a atuar para reduzir o excesso de liquidez no mercado. Sendo assim, deixar de considerar essas operações compromissadas no cálculo da DBGG poderia gerar incentivos à subestimação desse indicador de endividamento, nos moldes indicados.

Por todo o exposto na NT-NI (27/02/2008), esperava-se a exclusão dos títulos em carteira do conceito de DBGG melhorar a qualidade do indicador. Esses títulos, pelas suas características, não constituem dívida fiscal efetiva, sendo apenas um instrumento de gestão de política monetária.

Por sua vez, a inclusão das operações compromissadas evidencia a real situação patrimonial do governo, tendo em vista sua estreita relação com a dívida do Tesouro. Em outros termos, passa-se a incorporar no conceito de dívida bruta toda a dívida mobiliária em poder do mercado.

Esperava-se a divulgação da DBGG com essas alterações tornasse um instrumento mais efetivo na análise da situação fiscal do governo. Mas o público leigo (e interessado) deve observar nas estatísticas estarem -13,9% do PIB (ou 16% do total) em disponibilidades do Governo Federal no Banco Central, diminuindo-a, e +7,6% do PIB (ou 9% do total) em títulos livres na carteira do BCB, aumentando-a.

A DBGG seria um falso problema para justificar toda a austeridade fiscal? Por que o Congresso Nacional não autoriza o BCB a trocar as operações compromissadas por depósitos voluntários (e remunerados a juro zero) nas reservas bancárias como é feito em outros países?

A DBGG (85,5% do PIB em junho de 2019) inclui o total das operações compromissadas, mas não inclui os títulos livres na carteira do BCB. Se fossem incluídos esses títulos, a DBGG nesse conceito chegaria a 93,1% do PIB. Esse era o conceito de DBGG utilizado até 2008. Ele é chamado de “conceito FMI”, porque o FMI considera a totalidade dos títulos públicos emitidos pelo Governo Geral, mesmo sendo reservado pelo Banco Central para eventuais operações de open-market.

A ideia seria elaborar um outro indicador de DBGG, excluindo da mesma o valor da carteira de títulos no BCB utilizados para a política monetária. Nessa hipótese, esse indicador ficaria 19,3 p.p. do PIB abaixo da DBGG na metodologia atual (85,5% do PIB) e 26,9 p.p. do PIB abaixo da DBGG na metodologia adotada até 2008 (93,1% do PIB). Seria um indicador do efeito da troca de operações compromissadas por depósitos voluntários dos bancos no BCB. Colocaria a DBGG em 66,2% do PIB, afugentando o fantasma.

Crédito da foto da página inicial: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

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