Temos muitos problemas na nossa política de educação. E talvez o ensino superior não seja o mais grave. Mas não pode ser descuidado, até pela sua importância na formação dos quadros que vão alimentar os demais níveis do sistema.
Ora, o censo do Ensino Superior (INEP) mostra os seguintes dados, que sugerem muitas dificuldades:
Vamos simplificar ainda mais esse quadro, comparando apenas duas formas de organização acadêmica (privado x federal). Estou deixando de lado sistemas estaduais, que são bastante significativos. Em São Paulo, por exemplo, as três estaduais paulistas recebem cerca de 8,5 bi do governo do Estado e matriculam 115 mil estudantes na graduação e 62 mil na pós-graduação.
Vejamos os dois sistemas maiores no cenário nacional, o quadro das escolas federais e o das instituições privadas:
Como se vê, temos um enorme setor privado, que se beneficia de forte injeção de dinheiro público. Estima-se que 40% dos estudantes desse segmento são beneficiários do ProUni ou do Fies. Além disso, o segmento é também altamente beneficiado pela regra tributária das deduções de IR. Estas somam mais de 40 bilhões no item educação.
No quadro, estimamos (subestimamos?) 10 bi como gasto em educação superior, o nível de educação mais privatizado.
Alguns críticos sugeriram ao governo federal “pegar esse 1 bi” de renúncia fiscal das escolas privadas e investir nas escolas federais, migrando estudantes das escolas particulares para as públicas. Útil para provocar, a proposta parece politicamente voluntarista e logicamente insustentável.
O voluntarismo decorre do fato de que as isenções e imunidades são preceitos constitucionais, algo difícil de alterar no Congresso que temos. Pelo que se sabe, não há proposta para essa emenda, nem do governo, nem de parlamentares, mesmo de esquerda. Tanto quanto eu saiba, também não há proposta (nem da direita nem de qualquer esquerda) para mudar a lógica privatista das deduções do IR.
Fora o delírio, como raciocínio contábil, a ideia de “pegar esse 1 bi” é um truque de mágica. Suponha-se que essa decisão seja tomada agora, em 2015, para vigorar no exercício de 2016. Aí, esse “1 bi” simplesmente deixaria de existir e ninguém poderia “pegar”.
Os estudantes teriam migrado – e, portanto, teriam deixado de contribuir para o caixa privado e, indiretamente, para o recolhimento de impostos. É um raciocínio estranho supor que esses “consumidores” deixem de existir e, ao mesmo tempo, gerem tal receita.
O governo não poderia “pegar esse 1 bi” porque ele simplesmente não existiria ou seria reduzido a uma fração reduzida de seu valor original. E mais: suponha-se (no delírio) que as escolas federais recebessem “esse 1 bi” imaginário. Vejamos a tabela acima: esse recurso seria suficiente para incluir algo como 40 mil estudantes!
E há um agravante em todo cálculo de “migração” que seja feito: o setor privado tem quase 75% de seus estudantes no período noturno. E as escolas federais, tradicionalmente, resistem em ofertar vagas nesse período. Mesmo depois das reformas do Reuni (que forçou essa oferta), hoje o percentual, como se vê na tabela, é de perto de 30%. Se os estudantes saíssem das escolas privadas não teriam para onde ir.
Situação sem saída? Não. É possível (e necessário) avançar alguma reforma mesmo dentro desses limites políticos. Como o setor público poderia “competir” com o setor privado e oferecer uma alternativa aos estudantes que ali se abrigam? Expandindo? Sim, mas… Como?
Parece impossível (e desnecessário) promover uma expansão linear – algo como criar uma UFRJ em cada cidade do país, ou pelo menos em umas 1500, capilarização mínima. Mas é possível ter outro tipo de instituição. Por exemplo, universidades ou institutos “especializados”, focados em um campo de conhecimento, sem a obrigação da “universalidade de campo”, cursos em todas as áreas.
Há outras possibilidades, sugeridas por experimentos internacionais. Em outra ocasião voltaremos a eles. Por exemplo, a expansão francesa de cursos de curta duração, as Sections Techniques Supérieurs, alojadas em 2000 liceus do país.
Ou os 1100 Community Colleges públicos dos Estados Unidos – que fornecem ensino mais ou menos equivalente ao dos dois primeiros anos de graduação universitária geral. Em alguns estados americanos, essa capilarização ocorreu através de campus avançados das universidades estaduais.
O ensino superior público precisa saber como “roubar” estudantes do setor privado e oferecer a eles uma alternativa melhor. E gratuita. Contudo, isso significa que as escolas públicas precisam se reformar.
Flexibilizar suas instalações – para além das sedes retiradas e isoladas. Receber alunos dos cursos noturnos. Preparar-se para receber alunos com perfil diferente – por exemplo, alunos mais velhos, que deixaram o ensino médio há mais tempo.
Se não tivermos criatividade e ousadia para avançar nesse caminho, continuaremos a ter o sistema que temos – perverso e pouco eficiente. É tempo de inventar e de ousar. Crises não devem servir para adiar reformas, mas para avançá-las.
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
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