O efeito líquido dos debates delineados na parte 1 deste artigo foi o de sedimentar as seguintes convicções: primeiro, que a ontologia constitui a base incontornável da ciência; segundo, e em consequência, que o empírico depende da ontologia; terceiro, por isso mesmo, que as disputas intertradições científicas não podem ser resolvidas nem empírica nem ontologicamente, posto que as ontologias são incomensuráveis. Em nosso artigo supracitado justificamos a concordância com as duas primeiras assertivas e a discordância com a última, contra o relativismo no atacado que implica. No entanto, para os propósitos do argumento apresentado em seguida, vamos examinar a enorme influência dessas três ideias nas concepções atuais sobre ciência e explicação científica.
Em primeiro lugar, é necessário salientar que, sob o incontroverso impacto das formulações de Kuhn e de Lakatos, passou a predominar paradoxalmente a mesma ideia de ciência pregada pelo positivismo-lógico: que o discurso científico consiste em um cálculo axiomático-dedutivo. Tanto a noção de revoluções paradigmáticas (Kuhn) como a de competição entre Programas de Pesquisa Científica (Lakatos) pressupõem que toda ciência opera com base em uma ontologia, fonte de seus axiomas estruturais, dos quais são deduzidas as teorias ou conjecturas teóricas que, em seguida, são submetidas à corroboração pela evidência empírica. Sob tal perspectiva, e exatamente como pretendia o positivismo-lógico, o objetivo de qualquer ciência se resume a buscar regularidades empíricas e testá-las, de maneira circular, pelo empírico demarcado pela ontologia que lhe serve de base. O que implica admitir que o desenvolvimento de determinada teoria e sua validade social são tanto maiores quanto maior a extensão do território em que tem ratificada sua adequação empírica.
Dizer que a ciência tem como propósito exclusivo descobrir regularidades empíricas é o mesmo que postular que o objetivo único da ciência é a preditibilidade. Para ter esse objetivo a ciência tem por pressuposto (ontológico) um mundo de estruturas e relações imutáveis e, portanto, predizível. Nesse mundo sempre o mesmo a ciência preditiva funciona como simples instrumento para os sujeitos responderem com eficácia às compulsões estruturais do sistema e, com isso, reproduzindo-o indefinidamente com sua prática.
Nem sempre enunciado com franqueza, assim se define o caráter meramente instrumental da ciência. O mantra da eficácia prática tenta dissimular a circularidade da concepção: a ciência postula regularidades empíricas e, salvo erros lógicos, se autovalida corroborada pelo empírico do qual partiu. Além disso, dispensa dizer que a corroboração empírica, a capacidade preditiva e, em consequência, a utilidade de uma teoria na prática imediata refere-se a valores determinados. Apesar de se pretender puro instrumento, na verdade a teoria é instrumento da realidade subentendida em sua ontologia. Ao mesmo tempo em que figura a realidade social, a ciência se apresenta como instrumental de gestão da realidade por ela figurada. Razão pela qual a pretensão de uma ciência axiologicamente neutra é um total absurdo. Conclusão tácita, aliás, sustentada por um dos maiores ícones da tradição neoclássica, Milton Friedman, que, em sua famosa e pueril defesa do instrumentalismo, afirma que em relação comas diferenças fundamentais nos valores básicos os seres humanos só podem lutar (Friedman, 1994).
Esse exame dos desdobramentos das discussões no interior da filosofia da ciência permite refutar de maneira categórica as posições de Lisboa e co-autores referentes ao problema da objetividade do conhecimento, da verdade e dos valores. De acordo com Lisboa e Gonçalves, a deliberação sobre políticas econômicas “requer um juízo de valor”…[e] “juízo de valor não cabe à Economia, mas sim à deliberação da sociedade.” Com isso os autores insinuam, sem afirmar, que a Economia não parte de nenhuma visão de mundo e tampouco contribui para reforçar com sua autoridade científica as visões de mundo socialmente hegemônicas. O que equivale a dizer que, em sua opinião, a Economia trabalha em um vácuo ontológico. Incidentalmente, como a sociedade delibera sobre as políticas a serem adotadas sem recorrer à ciência é um profundo mistério. Toda deliberação sobre valores pressupõe algum nível de conhecimento sobre a constituição e estrutura do mundo, e de cuja objetividade a realização dos valores escolhidos depende. Realizado o valor, fica demonstrada a objetividade do conhecimento que orientou a prática bem sucedida. A prática é o critério da verdade ou objetividade do conhecimento, entretanto trata-se de verdade no estreito circuito da prática imediata.
Com a finalidade de sustentar que a prática imediata é o critério exclusivo da teoria, Lisboa e Gonçalves guarnecem o argumento com uma verdade absoluta, verdade com aspas – “verdade”. Em contraste com a verdade mundana da ciência, os autores asseguram que tal recôndita “verdade” é acessível unicamente “na religião ou em ramos da filosofia, não nas ciências”. Vedado à ciência o acesso a essa verdade transcendental, divina, os autores deduzem, com autocomplacência, que a ciência tem de se circunscrever ao varejo da prática imediata, do imediatamente dado.
Para compreender onde os autores buscam respaldo para uma ideia tão insensata é essencial retomar aquele consenso que os debates na filosofia da ciência produziram, ou seja, 1) que a ontologia é base incontornável da ciência; 2) que o empírico depende da ontologia; e 3) que disputas científicas não são resolvidas nem empírica, nem ontologicamente, dada a incomensurabilidade das ontologias.Tanto Lisboa e seus coautores – ortodoxos –, assim como Gala e Oreiro – heterodoxos –baseiam-se nessas noções. Uma vez aceitas, delas é possível inferir que o conhecimento objetivo é uma quimera, já que as disputas científicas são insolúveis. À primeira vista, portanto, ambas as atitudes parecem filosoficamente justificadas, pois expressam tão somente o ceticismo destilado nos debates em filosofia da ciência já referidos, em particular, o relativismo ontológico. Os primeiros, ortodoxos, baseiam naqueles pressupostos a sua defesa aberta do instrumentalismo, embora enrustindo o fundamento ontológico de sua posição. Falam de um lugar, mas pretendem que falam de lugar nenhum. Ideia, aliás, cada vez mais presentes nesses tempos de conservadorismo, como o demonstra com clareza o assim chamado “movimento escola sem partido”, que defende uma prática educacional não-ideológica, i.e., exercida de lugar nenhum.
Quanto aos últimos, heterodoxos, em virtude da irresolução das disputas entre as diferentes correntes da Economia preconizam, seguindo Lakatos, que a “única atitude cientificamente honesta e politicamente democrática é aceitar, incentivar e conviver com o pluralismo teórico”. Sob a simpática e sedutora aparência de tolerância com o outro, com a diferença, essa atitude é realmente assombrosa, pois implica afirmar que nossas crenças mais fundamentais sobre a constituição do mundo social são irrelevantes, são indiferentes. Absurdidade que Rorty, filósofo neopragmático, difundiu com o slogan: “a verdade é uma quinta roda”.
Como se pode ver, todas essas posições, reclamando diferenças no espectro ideológico, refletem o espírito antiontológico hegemônico. Não deixa de ser paradoxal que a negligência com relação às questões ontológicas seja respaldada precisamente pelos críticos pós-positivistas, os mesmos que insistiram que sempre falamos de algum lugar, e que esse lugar é ontológico. Porém, ela é consequência direta do relativismo ontológico da ideia de que paradigmas (Kuhn) ou núcleos rígidos (Lakatos) são incomensuráveis. Em outros termos, constituem o efeito líquido da crítica que, ao mesmo tempo em que demonstra o caráter incontornável da ontologia, declara a sua irrelevância. Assegura que sempre falamos de algum lugar, mas pretende que o lugar não importa. Para a tradição positivista o objetivo era erradicar as questões ontológicas do discurso científico; para o pós-positivismo, elas não podem ser erradicadas, mas tampouco respondidas.
Essas são as duas formas correntes de negligenciar a ontologia,de desacreditar a verdade, de contestar a objetividade do conhecimento. No entanto, como demonstrou Bhaskar, tal posição antiontológica mal dissimula uma ontologia do existente. Antiontologismo de fachada cuja especialidade é a de disseminar o ceticismo em relação a tudo que transborde a prática imediata. Em oposição a essa contrafação que marca o pensamento contemporâneo, contra a ideia de que o nosso conhecimento, por ser histórico, não pode ser objetivo; contra o corolário desta ideia, tão nefasto quanto ela: que a crítica é impossível e, portanto, quando exercida, é “autoritária”; contra a submissão voluntária, subentendida por tal ideia, ao mundo imediatamente dado, à vida social regrada pelo capital; contra a velada apologia da nossa escravização ao mundo constituído por nossa própria prática, contra tudo isso Bhaskar mostra que a ciência não opera no plano achatado do mundo colapsado nas impressões dos sujeitos; não se movimenta horizontalmente no mundo bidimensional do empírico. Ao contrário, a ciência procede ortogonalmente, do fenomênico para as estruturas, objetos e suas forças causais que produzem os fenômenos. Justamente por isso, a disputa entre teorias é disputa em torno das concepções acerca das estruturas e objetos reais, enfim, disputas ontológicas.
Evidentemente, as antinomias sobre a economia também só podem ser resolvidas em termos ontológicos. Admitir a objetividade ou realidade social da Economia, como ciência positiva, não equivale a encerrar o debate com a aceitação pura e simples da substituição da ciência por mera praxiologia. A crítica ontológica consiste precisamente em sustentar que o mundo social não é como a Economia o figura, o mundo imediato vivenciado e representado pelos sujeitos, cuja historicidade, se chega a ser cogitada, é absolutamente insondável, pois é vista como absoluta contingência. E se o futuro, por isso, não é descortinável, só resta aos sujeitos a infinita reprodução do existente. Contra essas noções inabilitantes, a crítica (ontológica) tem de insistir na historicidade concreta, aberta decerto, mas que apresenta alternativas concretas para os sujeitos, que não se resumem à reprodução/adaptação eficaz ao existente. À ciência cabe precisamente dar conta dessa historicidade objetiva, suas tendências e as práticas possíveis.
Se é correta nossa interpretação da contribuição de Bhaskar, por mais que tenhamos simpatia pelas propostas heterodoxas defendidas por Belluzzo & Bastos, acreditamos que não seja suficiente criticar a ortodoxia dando ênfase ao caráter complexo da vida econômica sob o capitalismo. Complexidade essa ignorada pela ortodoxia. A nosso ver, as diferentes formações sócio-econômicas podem ser mais ou menos complexas, mas o que as diferencia é a mudança radical da forma de organização de sua reprodução social, material e imaterial. Portanto, a mudança ontológica diz respeito à história e não à complexidade. Tratar da moderna sociedade capitalista sob o prisma da complexidade, mais uma vez trunca a historicidade e, por isso, limita a investigação científica e consiste em uma crítica limitada à ortodoxia, uma crítica epistemológica, ineficaz portanto. Hoje em dia, em que a teodiceia do capital – do futuro benfazejo prometido pelo crescimento econômico –não é mais crível nem para a ortodoxia, e em que o futuro aparece cada vez mais apavorante, parece-nos que a crítica está obrigada a falar de outros futuros possíveis.
Crédito da foto da página inicial: Alex Ferreira/Câmara dos Deputados (protesto de estudantes contra o projeto da Escola sem partido)
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