O desfile dos candidatos pela TV, nos debates, é algo fantasmagórico. Tudo ali parece fake, conversa fiada, porque o que realmente conta fica de fora. Nos temas e nas pessoas. Não se fala de nada que faça diferença. Nem está ali o candidato que faz a diferença. Um pouco do fora do tom de vez em quando sobrevoa a fala do Boulos, com a imagem que carrega, ou a de Ciro, quando apela ao endividamento das famílias. Mas é pouco, bem pouco.
Mas na mesmice e caretice dominante, dois seres despontam, na categoria especial dos aloprados – o cabo Daciolo e o capitão Bolsonaro. Não pelo conteúdo do que expelem pela boca. Longe disso. Mas pelo que o Espírito Santo neles revela – já que são emanações do sopro sagrado.
Há quem veja o Cabo Daciolo como uma espécie de clone imaturo de Bolsonaro – um Bolsonaro do B, uma versão brega do capitão. Não é. Vejamos, porque é relevante a lição de Jesus: separar o joio do trigo (embora seja um estranho trigo).
O capitão de fragata (ou o trocadilho, se preferir)
Dizer que Bolsonaro é ignorante, tosco ou machista não é coisa que dê resultado, se você quer atingi-lo. Aparentemente, isso até conta positivamente para grande parte seu eleitorado. O que talvez afete esse eleitor é destacar outras “qualidades” do candidato – se ele se revela um militar incompetente, um “traíra” ou aproveitador. Não é coisa que agrade o capitão lembrar o conhecido episódio do atentado terrorista frustrado que comandou. Tentou matar seus companheiros de farda para fazer valer suas opiniões pessoais. O episódio indica, além disso, um outro fator negativo para sua imagem: a incapacidade de executar o plano e a facilidade com que “tirou o corpo fora”. O fato de ter sido expelido do Exército é, para ele, mortal. Por isso esperneia quando o tema é colocado.
Outro ponto fraco do capitão – fraco para seu próprio eleitorado – é o envolvimento com a corrupção política. Por exemplo, o fato de “pendurar” a família e amigos em postos públicos. Ou receber ajuda moradia tendo imóveis (bem caros) em Brasília e Rio. Para um crítico dos “bandidos e ladrões”, um mau exemplo. Outro elemento – curiosamente pouco explorado por seus adversários – é que em seguidos mandatos o capitão não moveu uma palha para socorrer policiais mortos em serviço. Coisa que foi feita, curiosamente, por seus inimigos mortais – a vereadora Marielle e o deputado Marcelo Freixo.
Um outro episódio é incômodo para o Capitão América do subúrbio. O assalto. Os ladrões tomaram seu carro e, pior, sua arma, sem que ele esboçasse reação. Nem podia. Seu eleitorado deve ser mantido longe dessa informação. Afinal, se nem um militar consegue usar sua arma para se defender, por que deveríamos nós, civis, guardar com um 38 no porta-luvas do carro? Para dar tiros em motoqueiros quando nos desse na telha?
Tudo o que Bolsonaro quer é ser lembrado como o durão, o honesto, o íntegro, o batalhador. Algo diferente aparece com esses episódios incômodos – mas menos explorados pelos seus críticos: um cidadão claudicante, incompetente, folgado, aproveitador. Tudo diferente do que ele e sua gangue divulgam.
Deus está conosco até o pescoço
Não é o mesmo com o Cabo Daciolo. Recentemente, alguém justificou seu apoio a Daciolo, quando era candidato pelo PSOL, com argumentos algo piegas. Até sobrou a referência ao soviete de operários e soldados de Petrogrado, numa alusão estranha à greve de bombeiros e PMs no Rio. O senso de ridículo pede que evitemos tais disparates.
Mas vamos pelo começo. Ele é evangélico, um crente meio alucinado? Sim, ao que parece, está longe de ser mero teatro. Bolsonaro é que faz disso uma cena – é o famoso “vira beato para cantar as beatas”. Outra diferença: Bolsonaro é militar, o cabo não é, ele é bombeiro. Ele vem de uma corporação que foi militarizada, subordinada à Polícia Militar, que, por sua vez, foi modelada à imagem do Exército. A relação dele com o mundo e do mundo com ele é diferente daquela do Bolsonaro. O Bolsonaro é a personificação do estereótipo policial – é esta a sua relação com o povo, o cara que bate e mata. O bombeiro é outra coisa – é o cara que salva vidas, não que as elimina. É o cara que socorre, não o que espanca. Não é por acaso que, na greve em que o Cabo despontou sendo recrutado para o PSOL, os bombeiros apareciam como linha de frente da greve – na verdade, como bucha de canhão dos PMs. Aliás, sua inserção viciada nesse meio foi feito por uma política, uma vereadora exótica do Rio, que tentava conectar as greves de PMs do Rio e de Salvador, envolvendo-se com tudo o que havia de mais perverso na corporação.
O cabo revira os olhos e fala que o Brasil precisa de amor. O capitão não faz isso, diz que o Brasil precisa é de chinelo, chicote. O cabo elogia programas sociais. O capitão quer liquidá-los. Há uma série de diferenças entre os dois. Embora talvez falem para um público semelhante, falam com diferente tom. Apelam a diferente viés. O cabo responde àquela ansiedade da mãe que quer que o filho vá para a igreja (ou para o quartel) para se livrar das “más companhias”, para deixar as drogas. O capitão apela ao pai que quer que o filho entre nos eixos e aprenda a ser homem, distanciando-se de certas “inclinações”. O cabo dificilmente responderia à Marina aquilo que o capitão respondeu. O cabo delira, o capitão calcula. Atrás do cabo não vão os homens da grana. Eles preferem o capitão. Não apenas porque está na frente, mas porque encarna o que eles pensam do gado.
Crédito da foto da página inicial: Reprodução de tela da Rede TV!
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