A crise de 2008 exacerbou não apenas a enorme quantidade de dívida imobiliária norte-americana dispersa pelos mercados financeiros globais, mas também a montanha de dívida privada emitida por empresas, bancos, fundos e outras instituições financeiras.
Para evitar o colapso dos sistemas financeiros, e assim conter os impactos negativos sobre a atividade econômica, os tesouros nacionais socorreram as instituições financeiras, excessivamente alavancadas, por meio de processos de substituição de dívidas privadas por dívida pública.
Utilizou-se de mecanismos mais tradicionais como a aquisição de “ativos podres” (sem preço) em troca de títulos de alta qualidade (dívida pública), e de outros menos tradicionais como as injeções diretas de liquidez lastreada na emissão de títulos públicos.
Entretanto, estes processos de “limpeza” das finanças privadas e “poluição” das finanças públicas, que envolveu alguns trilhões de dólares, se mostraram insuficientes para amenizar o escalonamento das dívidas privadas e recuperar o crescimento econômico.
Apenas para a economia dos EUA, segundo os dados do Fed (Banco Central norte-americano), as dívidas do setor financeiro se aproximam de 450% do PIB (mais de 500% se for considerado o capital de terceiros).
Para as empresas, a relação ultrapassa os 120% (300% considerando o capital de terceiros). O endividamento das famílias e o endividamento externo se aproximam de 80% e 100% em relação ao PIB, respectivamente.
De 2008 a 2014, a dívida pública norte-americana cresceu de 100% do PIB para pouco mais de 120%; uma fração ínfima se comparada ao endividamento privado.
Após a atuação dos tesouros nacionais, entre 2008 e 2012, os arautos da austeridade fiscal passaram a ser fortemente ecoados pelo globo, sendo acompanhados pela política monetária “não convencional” do afrouxamento monetário (Quantitative Easing) para as economias centrais, como EUA, Europa e Japão, mas, inversamente, pela restrição monetária (elevação das taxas de juros) para as economias emergentes exportadoras de commodities e dependentes de financiamento externo, como Rússia e Brasil.
Em ambos os casos, apesar dos caminhos e raios de manobra diferentes, o objetivo foi o mesmo: propiciar a recomposição patrimonial privada através da elevação do endividamento público.
No Brasil, a partir de 2009, com as baixas taxas de juros internacionais e a expansão da liquidez gerada pelas políticas de afrouxamento monetário, a dívida externa em relação ao PIB (em dólar) das empresas produtivas foi de 3,4% para 5,4%, em 2014, e dos bancos foi de 3,3% para 7,5% no mesmo período.
Os empréstimos intercompany se elevaram de 4% para 10% do PIB. As persistentes elevações na taxa de câmbio, em 2015, apenas agravaram o cenário. Parte do endividamento externo de empresas e bancos migrou para a aquisição da dívida pública brasileira.
Assim, foi montada a armadilha da economia brasileira. Em nome dos retornos financeiros, a produção e o investimento produtivo foram sendo deixados de lado. Os mais crentes na “providência do mercado” acreditam que a retomada do crescimento depende exclusivamente da desvalorização da moeda doméstica para estancar o déficit externo, que, em 2014, ultrapassou os 4% do PIB.
Por outro lado, estes mesmos economistas não se dão conta, ou minimizam o fato, de que a desvalorização cambial intensifica o endividamento externo de agentes privados nacionais, uma vez que as dívidas foram contratadas em dólar.
A recomposição patrimonial das empresas e instituições financeiras pode ocorrer pelas transferências de rendas da sociedade para os detentores da dívida pública por meio do mecanismo da austeridade fiscal (intensificada com a escalada das taxas de juros).
As empresas produtivas, que administram seus recursos de tesouraria no mercado interfinanceiro e adiam investimentos, bem como as instituições financeiras detentoras majoritárias dos diretos da dívida pública brasileira, são agraciadas pela recomposição patrimonial em curso, enquanto que a maioria da população e dos pequenos e médios empresários, excluídos da ciranda financeira por não terem recursos líquidos suficientes, sofrem as consequências da crise econômica, do desemprego, do encarecimento do crédito e da perigosa falta de perspectiva para o futuro.
O Estado está garantindo a necessária preservação das empresas e do setor financeiro, mas sem a contrapartida para o interesse público. O reequilíbrio patrimonial e os lucros do setor privado estão sendo extraídos dolorosamente do cidadão comum por meio dos tributos, do encarecimento dos serviços financeiros e do enfraquecimento da atividade econômica e do poder de compra da moeda.
O Estado se prejudica para salvar as empresas e instituições financeiras, onerando o cidadão comum, na expectativa de que as empresas irão reagir elevando a atividade econômica.
É o mesmo filme da década de 1980, no contexto da crise da dívida, e das crises cambiais de 1999 e 2002, mas em proporções potencialmente menores devido à existência de um volume considerável de reservas internacionais. A atual aposta do governo é que o setor exportador, neste difícil cenário externo, e o programa de concessões de obras de infraestrutura serão capazes de puxar a reação dos gastos privados.
Processos de endividamento (público e privado) são inerentes às economias capitalistas e têm seus efeitos virtuosos ao permitirem o financiamento dos investimentos capazes de ampliar estruturas existentes e tornar viável a produção de inovações, bem como por facilitarem o acesso do público a bens de consumo duráveis e imóveis.
Por outro lado, a atual combinação de austeridade fiscal e restrição monetária é perversa, pois acaba elevando a dívida pública e os encargos associados a ela para propiciar a limpeza do patrimônio dos agentes privados, aumentando as riquezas financeiras de poucos, sem envolver o processo produtivo, do qual a maior parte da sociedade adquire as suas rendas e condições de vida.
Crédito da foto da página inicial: Contexto Livre (www.contextolivre.com.br)
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