Todos sabemos que a economia é uma ciência social complexa e inexata. Portanto, procurar reduzi-la e/ou transformá-la a meros resultados matemáticos significa o abandono completo daquilo que é (ou deveria ser) o mais atrativo e relevante no ensino econômico: compreender criticamente essa complexidade à luz das diversas teorias econômicas e, ao mesmo tempo, rejeitar o mito de que há apenas uma única maneira de se ensinar e aprender essa ciência social.
Um dos momentos que marcaram a trajetória recente do ensino econômico ocorreu no final da década de 1980 quando houve uma associação entre o pensamento econômico dominante – representado pelo Paradigma Neoclássico – e a filosofia política neoliberal que retomava seu predomínio na agenda política mundial. Com isso, se cristalizou uma visão de funcionamento e organização da economia mundial, a qual teve profunda influência na formação de gerações de economistas(1). Com isso, nota-se que nas duas últimas décadas do século XX se gestou uma matriz de formação acadêmica de economistas dominada pelo “pensamento único”.
A passagem para o século 21 e suas recorrentes crises econômicas revelou o fracasso de tais proposições, ao mesmo tempo em que possibilitou a retomada da crítica nas universidades sobre o “doutrinamento econômico” (2) a que estavam sendo reduzidos os cursos de ciências econômicas. Em grande medida, essa reação ocorreu e ainda está ocorrendo em várias partes do mundo porque, além de abstrato, o ensino econômico está se tornando monótono e desestimulante, ao não discutir adequadamente as diferentes concepções da moderna economia mundial, de seus valores e de seus desafios.
Movimentos críticos para se “repensar o ensino econômico”
Desde o início do século 21 surgiram movimentos em várias partes do mundo com fortes questionamentos ao ensino econômico, com exigências de mudanças não apenas das grades curriculares dos cursos de economia, mas fundamentalmente dos conteúdos e dos métodos pedagógicos. Apenas destacaremos alguns dos principais movimentos que impulsionaram as críticas ao ensino econômico atual.
Após o surgimento na França, no ano de 2000, do Movimento Post-Autistic Economics (3), houve reações críticas ao contexto atual do ensino em várias partes do mundo, com destaque para os debates que seguiram nos EUA e no Reino Unido (4). Na essência, esses movimentos colocaram em questionamentos dois pontos cruciais para o ensino econômico: a falta de uma visão plural e o uso excessivo da matemática para explicar os sistemas econômicos, levando a uma desconexão entre o conhecimento ensinado e o mundo real.
Dentre as principais insatisfações estudantis, destacam-se: a) os estudantes esperam fugir do mundo imaginário e começar a discutir e entender os fenômenos econômicos reais; b) os estudantes reconhecem a importância do instrumental, porém entendem que ele não pode se tornar um fim em si mesmo; c) os estudantes desejam conhecer e estudar o pluralismo dos fundamentos econômicos; d) os estudantes conclamam os professores a apoiar uma reforma curricular que de fato recoloque a realidade e os debates econômicos do mundo real no centro do ensino econômico.
Algumas considerações sobre o debate internacional
Esses debates nos remetem a um ponto crucial: qual deve ser a finalidade da economia. Penso que é a partir das respostas a essa simples indagação que as diferentes concepções até mesmo de ensino econômico ganham maior dimensão. Como bem colocado pelo movimento “Rethinkin Economics”, a economia, como qualquer outra ciência, precisa e deve estar a serviço do conjunto da sociedade e não servir apenas a uma pequena parcela da população que utiliza, inclusive, de vantagens econômicas para explorar outras parcelas da sociedade. Neste caso, ao longo do texto observou-se que em praticamente todos os movimentos críticos estudados os problemas com ensino econômico se repetem, o que nos permite afirmar que estamos diante de um problema de ordem global. Tais problemas podem ser sumarizados da forma que segue:
1) Falta de pluralismo teórico: chama a atenção que faculdades e regiões que tradicionalmente se pautavam pelo pluralismo teórico acabaram cedendo, nos últimos decênios, ao mito do pensamento único como forma de explicar a complexidade dos sistemas econômicos. Com isso, teorias econômicas seculares são ignoradas, ao mesmo tempo em que fundamentos do pensamento dominante, além de falhos, contêm pouca aderência ao mundo econômico real.
2) O mundo imaginário tomando o lugar do mundo real: como mencionamos no início deste texto, a economia é uma ciência social e, enquanto tal, apresenta como uma de suas principais virtudes a incerteza sobre determinados resultados, ou seja, não é uma ciência exata como a física, química e matemática. Este parece ser um dos descaminhos mais graves do ensino econômico das últimas décadas, uma vez que esforços teóricos são realizados cotidianamente na perspectiva de transformá-la em uma ciência exata.
3) Uso excessivo de métodos matemáticos: decorrente do pressuposto anterior, passou-se a buscar respostas cada vez mais em modelos matemáticos que, para apresentar resultados satisfatórios, precisam congelar a realidade econômica, uma vez que esta, por ser rigorosamente incerta, não caberia na exatidão dos referidos modelos. Normalmente esses procedimentos têm levado a um processo desconexo entre o que está sendo ensinado e o mundo econômico real, complexo e inexato.
4) Dogmatismo assumindo o lugar da Teoria Econômica: a ciência econômica não pode ser tratada como profissão de fé por parte de um determinado segmento que, ao se mostrar falho na apresentação de suas respostas a problemas econômicos reais, acaba transformando seus pressupostos em dogmas que precisam ser continuamente repetidos. Decorre daí a forte tendência à manualização do ensino como forma de domínio mais dogmático do que científico.
5) Marginalização do pensamento crítico: uma das maneiras de domínio global do pensamento único foi abafar qualquer forma de pensamento crítico para evitar possíveis questionamentos às próprias teses do pensamento dominante consideradas intocáveis, mesmo que apresentando falhas recorrentes. A prática mais comum nos departamentos de economia tem sido isolar os colegas que não se coadunam com os fundamentos do mainstream e aos poucos substituí-los por outros mais “confiáveis”, mesmo que estes apresentem sérias limitações profissionais e graves lacunas de formação teórica.
6) Repensar o modelo de ensino: o ponto de partida para se repensar o ensino econômico atual é colocar o mundo real no centro de todo esse processo que abrange três grandes dimensões: conteúdo programático, método didático e grade curricular. No primeiro caso, e à luz de tudo o que foi dito anteriormente, é necessário desverticalizar o ensino econômico de tal forma que todas as diferentes interpretações teóricas sejam contempladas no contexto do ensino a ser ministrado. Já o método de ensino é fundamental para que o conteúdo seja devidamente apropriado pelo estudante, de tal forma que o mesmo se sinta estimulado a estudar economia. Finalmente, a grade curricular precisar ser elaborada como reflexo dos tópicos anteriores. Infelizmente, em muitos processos de reforma do ensino econômico em curso, praticamente tudo se resume a apresentação de uma nova grade curricular.
Notas
(1) Milton Friedman afirmou que os economistas estão crescentemente se tornando galhos/ramificações da matemática, ao invés de se preocupar e saber lidar com problemas econômicos reais.
(2) No sentido de ensinar a uma pessoa ou a um grupo de pessoas uma determinada crença acriticamente, impedindo ela(s) de se engajar criticamente com a disciplina.
(3)O termo autistic significa uma subjetividade anormal, aceitando-se mais a fantasia do que a realidade. Neste caso, a subjetividade enfatizada pelos estudantes franceses dizia respeito ao ensino econômico dominado pelo pensamento Neoclássico. Para os estudantes, aquela forma de ensino estava se tornando esquizofrênica porque a matemática era um fim em si mesma, transformando a economia numa ciência autista. Para maiores esclarecimentos, vide webpage: www.paecon.net
(4) No Reino Unido surgiu, em 2011, na Universidade de Manchester o movimento The Post-Crash Economic Society. Já ao final de 2017 foram lançadas as “33 Teses” pelo movimento “Rethinking Economics”.
ความคิดเห็น