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Constituinte e novas eleições: as outras modalidades do golpe

Publicado no Jornal GGN em 8-6-2016

As situações extremas colocam as pessoas em desespero, e o desespero, por seu turno, é o pai das ideias malparadas. Nestes contextos, mesmo pessoas bem-intencionadas aderem às soluções mais estapafúrdias. Com a crise atual na qual nos vemos submergidos não é diferente. Com o esfacelamento do governo Temer, com déficit crônico de legitimidade, reacionário até a raiz e alvejado repetidas vezes por escândalos de corrupção, forças políticas, inclusive de esquerda, começam a aventar a realização de novas eleições. Antes disso, havia aqueles que pregavam uma constituinte para enfrentar a paralisia do sistema político, praticamente todos de esquerda. Duas ideias muito ruins, mas em intensidades diferentes: a constituinte é certamente bem pior do que novas eleições. Vamos a ela primeiro.

Uma constituinte é, obviamente, feita para produzir uma nova Constituição e, portanto, abolir a vigente. Mas, a decisão de se instituir uma constituinte (perdão pelo trocadilho) não está submetida a critérios de legalidade ou de constitucionalidade. A razão é simples, como já ensinou o filósofo realista Carl Schmitt: um novo ordenamento jurídico não pode conter dentro de si sua própria revogação. Por definição, uma constituinte é um ato verdadeiramente ilegal e puramente político.

Deve haver um pacto político, que precede e propicia a criação do contrato fundamental da nova legalidade: a nova constituição. Como ato político, ele tem que ser pensado da perspectiva das estratégias dos agentes. Para ficar dentro do paradigma de Schmitt, a política tem lado. E para o lado progressista e democrático tal proposta é uma completa desfaçatez.

Não estamos mais em meados da década de 1980, insuflados por um movimento de democratização que tomava toda a sociedade brasileira, sequiosos por nos livrar dos entulhos autoritários que estavam sendo deixados pelo regime militar moribundo, com os olhos em um novo Brasil. No caminho de lá para cá, parte dos que apostaram no projeto que se tornou a Constituição de 1988 se desviaram do curso e hoje se converteram em apologistas do mercado e da subserviência aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos; não acompanharam as transformações que a Constituição Cidadã possibilitou, no sentido da inclusão e do reconhecimento. Alguns se comportam como verdadeiros zumbis, movidos somente pela ganância e pelo ressentimento, como é o caso de Fernando Henrique e José Serra – e não estou me referindo aqui a sua aparência física.

A deriva à direita da antiga social democracia brasileira, o PSDB, foi seguida pelo centro representado pelo PMDB. Preservando sua característica principal, que é ser ideologicamente amorfo, ele agora se adapta facilmente aos novos tempos. E esses novos tempos trazem também hordas de parlamentares evangélicos ultraconservadores, e católicos também, só que em menor número, aglutinados em partidecos ou mesmo nos poros de grandes partidos. Movendo-nos para a sociedade civil, assistimos desde junho de 2013 ao espetáculo deprimente dos movimentos de rua de direita. A classe média branca dos grandes centros, mobilizada pela mídia e por entidades de perfil explicitamente reacionário, começou a sair às ruas para vociferar a agenda que a própria mídia lhes ensinou: a antipolítica e o antipetismo. Amarrando toda essa grande marcha à direita vem a própria mídia, monoliticamente irmanada há mais de década no projeto de derrotar “a esquerda no poder”.

Em suma, é neste contexto que querem montar uma constituinte. Talvez seja melhor colocar em forma de pergunta: como seria possível obter um contrato constitucional mais progressista que o de 1988 em um contexto politicamente tão pior que aquele da Constituição Cidadã? Imaginem se, ao invés de eleger uma assembleia constituinte, o próprio congresso arrogasse para si esta tarefa, como ocorreu na constituição anterior! Mas não precisa. Mesmo se houver eleição de constituinte exclusiva, imaginem a qualidade dos eleitos! Provavelmente similar à que temos agora na Câmara dos Deputados, a mais conservadora da história. A não ser que os defensores desta ideia tenham algum plano secreto para resolver esse problema, uma constituinte agora seria um desastre de proporções titânicas para o nosso país.

Não se trata de deixar de reconhecer os problemas da Carta de 1988. Afinal de contas, ela não está funcionando nada bem sob o teste de estresse pelo qual passamos neste momento. Permitir que dois poderes, Judiciário e Ministério Público, se isolem da accountability democrática e sofram colonização por interesses políticos e corporativos é falha séria e de difícil conserto. Agora, é sempre possível piorar, e muito.

Como a caixa que guarda ideias ruins não tem fundo, sacaram de lá outra: a realização de novas eleições. Tal iluminação acomete gente ao longo de um amplo espectro ideológico, basicamente todo mundo que não aceita o governo golpista ora no poder. Sua narrativa mais acabada é a seguinte: se rejeitado o impeachment no Senado, Dilma voltaria ao poder lastreada por um acordo político que inclui a aprovação no Congresso de emenda constitucional chamando novas eleições. Argumentam que essa seria a única maneira de restituir a legitimidade do governo.

Diferentemente da constituinte, tal projeto deve ser julgado não somente do ponto de vista da estratégia política, mas também de sua propriedade constitucional. A emenda proposta não abole a Constituição, algo praticamente impossível, mas cancela algo que, a despeito de ser regulado pela Constituição, é mais importante do que ela própria: a eleição. A escolha por meio do voto popular constitui o ato fundamental do regime democrático representativo, pois é por meio dele que se dá a transferência da soberania popular para os representantes escolhidos. Não há justificativa possível para cancelar tal ato, a não ser um impeachment legal e justo, o que não é o caso do processo atual, como já ficou explícito. Assim, uma nova eleição seria um impeachment por outros meios. Em outras palavras, Dilma escaparia do impeachment somente para se auto-impedir ao apoiar tal emenda constitucional.

Quem defende tal projeto coloca conveniências da ordem da estratégia política à frente de questões institucionais muito mais fundamentais do ponto de vista da manutenção do regime democrático. É fundamental que mantenhamos o funcionamento regular das eleições, ou seja, da transferência da autorização popular, a despeito das crises políticas e econômicas pelas quais passamos.

Mesmo do ponto de vista estratégico esse projeto não faz sentido. Não parece ser razoável supor que uma eleição feita à toque de caixa, no atual contexto de caos político, vá produzir um vencedor investido de legitimidade maior que a que Dilma possa angariar se retornar ao Planalto. Deliram aqueles que imaginam uma eleição geral. Deputados e senadores nunca iriam abrir mão de seus mandatos de livre e espontânea vontade. Assim, em caso de eleição, lançaríamos o novo presidente na mesma fossa do presidencialismo de coalizão que gerou este espetáculo dantesco do impeachment, com direito a baixo-clero sublevado, bancadas da bala, do boi e da bíblia turbinadas, partidos inanes e tudo o mais. Esperar um resultado positivo frente a uma combinação tão desfavorável de fatores é ilusão pura.

Muitos dizem: Dilma não teria condições de governar o Brasil. Mas a questão que se coloca é: quem hoje em dia teria condições de fazê-lo? Que força política? A melhor solução para o problema em que nos metemos é o retorno da presidente Dilma, calçado por um acordo político que lhe permita uma governabilidade mínima. Seu governo será provavelmente medíocre e conservador, como já vinha sendo há anos, por sinal, mas pelo menos preservaremos parte fundamental do nosso sistema político, e isso não é pouco.

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