O preconceito contra a pobreza é antigo como cultura e visão de mundo, e mais belicoso se torna quando o Estado promove e implementa políticas distributivas, na forma de concessão de renda monetária aos pobres.
A longa história desse preconceito deita raízes, no mínimo, no início do século 19, quando a pobreza urbana comparece nas grandes cidades industriais europeias. A desqualificação dos pobres foi e permanece sendo moeda corrente em nossas sociedades.
Imediatamente, o pobre aparece como autor de sua própria pobreza e esta é vista como um vício de vagabundos e, portanto, as vítimas são culpabilizadas e percebidas, como o século 19 deixou gravado, como sub-humanidade.
No Brasil, o Programa Bolsa Família trouxe à tona centenas desses estereótipos desqualificadores de nossos concidadãos pobres, sem escolaridade e sem emprego. A história da injustiça social mostra que as entidades beneficentes americanas, ainda no século 19, diziam claramente nos seus estatutos que os pobres são incapazes e jamais se deve dar dinheiro a eles. Temos que dar-lhes comida e ainda vigiá-los, caso contrário, farão besteiras com suas vidas.
Sabemos que, entre nós, também se ouviu coisas semelhantes em relação ao Bolsa Família, tais como: bolsa esmola, coronelismo de Estado, bolsa-vagabundagem e assim por diante. O ódio maior provém do fato de o Estado transferir dinheiro aos pobres.
Viviana Zelizer, professora da Universidade de Princeton- Estados Unidos, demonstra em seu livro “El significado social Del Dinero” que este sentimento se vincula diretamente à evidência de que a inclusão de grandes contingentes da população na economia monetária os torna mais livres. Abre-se um leque mais amplo de fruição de liberdade pessoal. Pode-se, até, quem sabe, associar-se e exercer atividade política e pressionar por melhorias nas suas vidas, enquanto a caridade privada deixa os pobres moralmente intactos ao desejo de justiça social e, portanto, de democracia.
Na pesquisa que realizamos sobre o Bolsa Família com mulheres beneficiadas, pretendeu-se avaliar o impacto da bolsa sobre a subjetividade das pessoas que recebem o rendimento. Nosso objetivo consistiu em apreender os graus de autonomização alcançados e os meramente potencializados pela percepção de renda monetária, por menor que esta seja, como é o caso do PBF. Autonomização pessoal é um dos fundamentos da cidadania democrática.
É sempre importante lembrar que, no caso dos bolsistas, se trata de pessoas muito pobres em termos de renda e riqueza, mas não é apenas esta faceta que se expõe desde logo quando se adentra em seu universo. Importa registrar sempre, para se compreender a sua subjetividade, que se trata de pessoas cuja existência inteira foi tecida de carecimentos básicos. O Estado sequer lhes garantiu o direito à vida e à segurança, descumprindo assim suas funções precípuas. Foram desprovidas do acesso aos gêneros indispensáveis à reprodução da vida e do direito à herança civilizatória conquistada pela humanidade.
Muitas dessas pessoas passaram pela experiência humilhante de serem obrigadas a “caçar comida”, como fazem os animais, constituindo o que Hannah Arendt chamou de “povos sem Estado”, ou seja, de indivíduos sem direitos garantidos por um organismo estatal. Isto posto, se pode afirmar que o Estado brasileiro, por muitos anos, decretou sua morte civil, isto é, expulsou-as da humanidade. Esta situação as faz sentirem-se inferiores, humilhadas, cujas vidas duras as tornam desprovidas de futuro.
Dez anos depois da implementação do programa distributivo, assistimos suas filhas e filhos desejarem ser médicos, enfermeiras, professores. O significado democrático disto é enorme. Isto é, a experiência de um pouco mais de justiça social proporciona às novas gerações de filhos do Bolsa Família o direito de sonhar, de projetar algum futuro, direito de que suas mães e avós foram destituídas.
As entrevistas e conversas realizadas mostraram que é possível entrever outras potencialidades liberatórias, outras dimensões presentes na dotação de recursos monetários, sem perder de vista que este nível é o chão concreto de qualquer outra consideração.
No alto sertão de Alagoas, à pergunta sobre o que havia mudado na sua vida após seu ingresso no Programa Bolsa Família, que lhe proporciona um rendimento monetário regular, Dona Lúcia, moradora na zona rural da cidade de Inhapi, respondeu: “Acho ótimo. Ave Maria, eu acho muito bom. Porque é uma ajuda pra gente. E para muitos que necessitam. Para mim foi muito bom ter esse dinheiro. Se acabar isso, não tem mais jeito da gente viver nesse mundo. É uma ajuda grande.”
De um modo geral, a aprovação do programa por parte das beneficiadas é bastante grande, contudo, não deixam de ressaltar a insuficiência da renda recebida para se obter mais melhorias na vida, ganhar mais liberdade na escolha dos bens de consumo. Reivindicam mais renda diante da ausência quase absoluta de perspectiva de empregos regulares.
Seu horizonte de expectativas é reduzido, simples. Apenas querem ter acesso a uma vida mais digna, habitações melhores do que seus miseráveis casebres, normalmente mal iluminados, mal ventilados e exíguos para abrigar toda a família. Na grande maioria das famílias nas regiões pesquisadas, já se pode aferir empiricamente que o Bolsa Família representa o único rendimento monetário percebido e, em vários casos, constitui a primeira experiência regular de obtenção de rendimento na vida. Antes disto, a vida se resumia à luta diária, como fazem os animais, para “caçar comida,” tal como fazia Fabiano e Sinhá Vitoria, personagens de Graciliano Ramos no romance “Vidas Secas”.
A humanização e a dignidade das pessoas se ancoram na experiência de um mínimo de condições materiais. Como nos ensinaram os clássicos, o dinheiro regular tem poder liberatório, isto foi compreendido muito bem por Dona Amélia (nome fictício), 41 anos, casada, 10 filhos (Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, julho de 2008): “A gente tem mais liberdade no dinheiro.”
Deve-se ressaltar, contudo, que as possibilidades morais de liberação da opressão conjugal, quando ocorre, ainda são muito raras nas regiões pobres e atrasadas do Brasil, devido aos rígidos controles familiares que atuam sobre as mulheres. Entretanto, alguma coisa neste sentido começa a acontecer, apesar das imensas barreiras culturais impostas secularmente às mulheres pobres. Como disse o poeta italiano Carlo Levi, o futuro tem um coração muito antigo.
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