Publicado no blog do Mário Magalhães em 10-12-2014
Sim, porque as chagas estão expostas, como sabe quem não se faz de cego e desdenha da dor alheia.
Que ferida cicatrizou, para as velhinhas que até o último suspiro vão sonhar em sepultar dignamente o filho desaparecido sob custódia do Estado?
Ou para os rebentos que esperaram a mãe e o pai regressarem à casa e nunca mais os viram, receberam seu afago e ouviram o carinho de um “boa noite, meu filho”?
O relatório derradeiro da Comissão Nacional da Verdade só será instrumento de reconciliação da brava gente brasileira se for interpretado como ultimato para as atuais e futuras gerações: quem violar os direitos humanos, castigando o povo com covardia e brutalidade, há de ser punido.
Como são _e merecem mesmo ser_ ainda hoje os criminosos nazistas, os torturadores argentinos, os genocidas combojanos, os açougueiros sérvios. Os que trucidaram seus compatriotas e barbarizaram além fronteiras.
A Justiça precisa castigar quem torturou, matou e sumiu com corpos de oposicionistas, sobretudo na longa jornada sombria inaugurada com o golpe de Estado de 1964.
Nunca é tarde para fazer justiça.
A impunidade para os bandidos de uniforme daquela época incentiva os agentes públicos a maltratarem os pobres e desgraçados de hoje.
Crime sem castigo é passaporte para eternizar a covardia.
Na forma, cavucamos o passado. No conteúdo, decidimos que futuro semeamos.
O algoz dos escravos no pelourinho é o padrinho do torturador dos séculos 20 e 21.
Os militares e policiais que desapareceram com o corpo do guerrilheiro Virgílio Gomes da Silva, assassinado na tortura em 1969, inspiraram os facínoras que sumiram com o pedreiro Amarildo em 2013.
As atrocidades descritas pela Comissão Nacional da Verdade nesta quarta-feira 10 de dezembro de 2014 _ainda não li o relatório_ não podem, não devem e não serão ponto final de nada.
Mas dois pontos, anunciando batalhas sem fim respingadas pelo sangue dos mortos, pelo suor de quem não se entrega e pela consciência de quem peleia pela civilização, contra a barbárie.
Com qualquer forma jurídica, é indispensável julgar os criminosos da ditadura. Eles estão vivos às pencas. Até outro dia, um desses matadores pagos com dinheiro do contribuinte contava vantagem ao dizer que ele e seus parceiros cortavam os dedos das mãos, arrancavam a arcada dentária e extirpavam as vísceras de presos políticos, antes de jogar os cadáveres em rio onde jamais viriam a ser achados.
Reparem bem: os discursos mais radicais e aparentemente incendiários, em torno das conclusões das comissões da verdade, serão um engodo histórico se não exigirem o fim da impunidade. Crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis. A ditadura não tinha o direito de se auto-anistiar em 1979, como sabe qualquer cidadão honesto e democrata convicto. Os oposicionistas já foram julgados, punidos e perseguidos _muitos deram a vida lutando pela liberdade.
Como ignorar _não punir, no balanço sincero da história, é ignorar_ quem torturou uma presa notoriamente grávida? Criança, o filho se perturbava com o barulho de chaves. Era a lembrança de quando abriam a cela para levarem a mãe _e ele, na barriga_ às sessões de eletrochoque.
E quem motivou dois irmãos menores de dez anos a dormirem amarrados ao berço da irmã bebê, para acordar caso os agentes da ditadura a carregassem embora? Os garotos iriam brigar, pois a coragem estava no sangue e, o amor, no coração.
E os que levaram meninos aos pais, cuja voz reconheceram, mas não o rosto, deformado pela violência despudorada dos torturadores?
E os estupradores das jovens que generosamente dispensaram o conforto dos lares de classe média pensando em ajudar os miseráveis do Brasil?
E quem empalou e executou, em instalações públicas, homens e mulheres sem condições de se defender?
E os ao menos 29 tiras que fuzilaram um guerrilheiro que não portava nem um canivete?
Stuart Angel poderia ser nosso irmão. Zuzu Angel, nossa mãe.
Na parede da memória, como diria o Belchior, esses são os quadros que doem mais.
O Brasil é um dos dez países mais desiguais do planeta porque sempre acochambrou as injustiças.
Nesta terra se mata como em poucas, pois falta a vacina da punição.
As feridas estão aí, é preciso salgá-las, viver a dor, para que enfim, com o amparo de mais uma viagem às trevas da história, os criminosos da ditadura sejam punidos.
Chega de ditadura, chega de covardia.
Nunca mais!
Mário Magalhães é jornalista e autor da “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”.
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