Poucos duvidam hoje de que a crise iniciada em 2007 nos Estados Unidos com o “estouro da bolha” das hipotecas de alto risco, as subprime, se tornou uma crise sistêmica do capitalismo – a maior desde 1929. Porém, no Brasil, segue inflamada a discussão sobre em que medida a crise mundial teria influenciado a crise doméstica, evidenciada na queda expressiva dos investimentos, da arrecadação, no crescimento negativo do PIB, na perda de vagas de emprego.
O governo federal continua afirmando que sim, as dificuldades do país se devem principalmente à crise global, apesar dos esforços feitos para retardar ao máximo sua chegada com políticas anticíclicas (como redução de tributos e expansão do crédito) no passado recente.
Em contrapartida, o discurso repetido na grande imprensa e adotado pela oposição é o de que a presidente Dilma Rousseff estaria pondo na conta da crise – praticamente já superada, segundo essa visão – aquilo que, na realidade, seria resultado de medidas equivocadas de sua gestão anterior. Enfim, que a crise brasileira estaria descolada da mundial.
Por certo são inúmeras e ainda não totalmente dimensionadas as razões que explicam a recessão pela qual atravessa o país, e a crise política a que está atrelada. Mas uma importante contribuição ao debate é tentar entender o alcance dessa crise global, ainda longe de uma solução, suas causas e reflexos nos próximos anos, em especial sobre a economia brasileira.
No capítulo 1 de Dimensões Estratégicas do Desenvolvimento Brasileiro – As mudanças mundiais em curso e seus impactos sobre as perspectivas de desenvolvimento do Brasil (vol.1), que pode ser acessado no site do Centro de Altos Estudos Brasil Século XXI , Bruno De Conti afirma que a crise sistêmica, que “foi mudando de forma, assumindo feições diferentes, embora com raízes comuns e que não se encontram apenas na conjuntura atual”, é explicada por acontecimentos econômicos das últimas quatro décadas e promete ser de longa duração.
Segundo ele, trata-se de uma “crise de queda importante na demanda agregada” e que “sucede um momento de superacumulação de capital em diversos países, de forma que a capacidade ociosa existente em alguns setores contribui para desincentivar o investimento”.
Daí o cenário global atual de baixo crescimento (que agora começa a afetar até mesmo a dinâmica China), de superoferta, queda nos preços das commodities e baixa demanda. Esse quadro afetou também os países emergentes, afirma ele, apesar de alguns economistas terem previsto o contrário.
De Conti aponta ainda que no que diz respeito ao mercado de trabalho e aos direitos sociais, “os efeitos da crise são ainda mais preocupantes”. O emprego direto e formal, com proteção social e organização sindical deixou de ser referência desde os anos 1980, lembra, tendo ingressado desde então em um processo de precarização. Com a crise, esse “mercado de trabalho já fragilizado gerou de maneira imediata uma destruição massiva de empregos em boa parte dos países centrais e queda acentuada dos salários médios”.
Na mesma publicação, no capítulo 2, Simone Silva de Deos, Ana Rosa Ribeiro de Mendonça e Olívia Bullio se debruçam sobre o rearranjo do sistema financeiro após a eclosão da crise e da falência, em 2008, de grandes bancos como Bear Stearns e Lehman Brothers. O estudo traz dados que evidenciam uma maior concentração bancária no período, tanto nos Estados Unidos, como na União Europeia, seguindo uma tendência iniciada com a desregulamentação do setor nos anos 1980.
No caso dos Estados Unidos, em 2006, antes do início da crise, “os cinco maiores bancos detinham 28% dos ativos totais, enquanto que, em 2010, este valor era de 40% – um acréscimo de quase 43%”. O crescimento, segundo as autoras, teria ocorrido como resultado de uma série de movimentos, como fusões e aquisições, “em muitos casos estimuladas e/ou financiadas pelo Federal Reserve”.
Deos, Mendonça e Bullio concluem que, apesar de ser cedo para avaliar os efeitos das novas regras estabelecidas após o início da crise – como o Acordo de Basileia III, de 2010 – é possível que estas “levem os bancos a retrair sua exposição fora de seus países de origem, podendo ocorrer desinternacionalização do sistema financeiro, em algum grau”.
Nesse novo cenário, se perguntam quais os desafios que se impõem ao sistema bancário brasileiro. Uma primeira resposta é a redução do interesse dos bancos internacionais pelo nosso mercado. Quanto a isso observam que “o grau de abertura/integração internacional do sistema bancário no Brasil do sistema bancário no Brasil é ainda relativamente baixo, o que, de fato, protegeu o país dos efeitos mais severos da crise. Assim, uma lição de política financeira que pode ser extraída e deve ser articulada à reflexão sobre as prováveis novas configurações do segmento bancário é a importância do capital nacional”.
As autoras defendem ainda que o sistema bancário brasileiro mantenha-se “majoritariamente ancorado no capital nacional e num sistema de bancos públicos e, quando articulado politicamente, que seja, de um lado, gerador de um grau menor de instabilidade e, de outro, capaz de enfrentar a crise de crédito com um comportamento anticíclico”. No estudo, elas mostram que na União Europeia ficaram em situação melhor as economias com grau baixo de abertura ao capital bancário externo, mesmo ao capital de outros países do bloco.
Na mesma linha, Bruno De Conti afirma que no Brasil, além da redução da vulnerabilidade externa e das melhorias na área social – conquistas dos últimos dez anos – a atuação dos bancos públicos (BNDES, Caixa Econômica Federal e Banco do Brasil) foi “absolutamente crucial para o enfrentamento da crise”. Ele lembra que o BNDES, por exemplo, compensou a tendência de contração dos volumes de crédito disponíveis na economia brasileira.
Assim, de acordo com os estudos citados, são algumas decisões da política econômica dos governos Lula e Dilma, nela incluída uma proposta de bancos públicos fortes, as responsáveis por ter o Brasil enfrentado bem a crise internacional, pelo menos até 2014. Essa mesma forma de agir, porém, é apontada pela oposição, descrente dos efeitos da crise sobre o país, como causadora do desequilíbrio fiscal, que, por sua vez, estaria na raiz da atual crise econômica brasileira.
Como se vê, uma “disputa de narrativas” sobre os fatos recentes que, ao que tudo indica, está de longe de terminar.
Crédito da foto da página inicial: Arquivo EBC
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