Na sociedade atual é a psique individual que conta nas representações políticas do indivíduo, mesmo não sendo ela uma redoma, mas um solo social pleno de influências. A psicopolítica fez parte da população perceber seu mundo como uma realidade sob ameaça.
No final do mês de setembro de 2022 esteve em São Paulo o geógrafo francês Jacques Lévy. Ele veio à Universidade de São Paulo pelo Programa PrInt USP/CAPES para atuar no projeto “A urbanidade como abordagem para análise das eleições presidenciais brasileiras de 2022”. A iniciativa foi da pós-graduação de Geografia Humana (PPGH) da FFLCH e contou com o apoio do IEB-USP.
Para quem não o conhecia algumas de suas posições poderiam espantar. Um bom exemplo é um dos seus últimos livros L’humanité: uncommencement: letournantéthique de La société-Monde. Nele Jaques Lévy apresenta um surpreendente conjunto de reflexões de grande envergadura intelectual, que extrapola as fronteiras de sua disciplina e que busca debater as transformações sociais em diversos âmbitos.
Outra surpresa, agora na arena epistemológica, vem do seu último livro que propõe uma inovação radical. O título é Pour une Science du Social. Dito de outro jeito: por uma única ciência do social. No dia 05 de outubro, ele realizou uma conferência denominada Psicopolítica e Espaço: geografias políticas na era da sociedade de indivíduos. Ela serve, igualmente, para ilustrar o caráter inovador das reflexões de Jacques Lévy sobre várias questões contemporâneas.
Como a ideia de psicopolítica pode nos ajudar na compreensão da nova dinâmica política (antipolítica?) que se desenvolve no cenário brasileiro e que, sabemos, não é nossa exclusividade? O ponto de partida é a emergência de uma sociedade de indivíduos. A abordagem de Norbert Elias (em A sociedade dos indivíduos) que enxergava uma conciliação entre dois termos contraditórios adquire atualmente uma concretude que não pode mais ser negada.
A ascensão do indivíduo ao status de realidade sociológica incontornável implica diretamente na dinâmica política, assim como também a ideia de uma sociedade de classes e da luta entre essas, correspondia a uma dinâmica política específica.
Nesse último caso, as ideologias tanto no viés positivo de ideário a ser alcançado quanto na posição de criadoras de ilusões, assim como a consciência de classe seriam ingredientes substanciais da política.
Ora, na era da sociedade dos indivíduos é a psique individual que conta substancialmente nas representações políticas do indivíduo, mesmo considerando que ela não se constitui numa redoma e sim num solo social pleno de influências, mas ainda assim é uma psique individual. Daí a psicopolítica. Isso não é óbvio, pois nem sempre esse status foi concedido ao indivíduo.
Em sua conferência Jacques Lévy começa por definir o que não é a psicopolítica. Ela não pode ser confundida com a “psicologia de massas” ou com a “psicologia dos povos”, enunciados célebres, mas geradores de equívocos, pois atribuíam aos coletivos sociais ou às sociedades as características e as lógicas dos indivíduos.
A psicopolítica também não é uma panaceia, um “todo psicológico”, como é praticado pelo individualismo metodológico que reduz os eventos sociais como as crises ou as guerras a um fenômeno psíquico, que livre, sem controle, será capaz de perturbar a dinâmica social.
Nem, tampouco, a psicopolítica pode ser associada à biopolítica, célebre aporte de Michel Foucault que enxergava uma dominação e, justamente, uma negação das individualidades em razão da gestão dos corpos por instituições (totais), pelos “poderes”.
Para Lévy, a psicopolítica começa quando se reconhece a emergência simultânea de três realidades sociais, distintas, mas relacionadas: o indivíduo-ator, a sociedade de indivíduos e o cidadão. Ela é o encontro entre o agir pessoal e o agir político no seio de um mesmo indivíduo. Como se vê é um tanto diferente do filósofo Byung-Chul Han que percebe a proeminência do indivíduo e sua psiquê na sua própria e voluntária dominação. E a isso, ele denomina psicopolítica. Para Lévy, sem diminuir a complexidade do fenômeno e sem deixar de perceber as contradições perturbadoras que Han percebe, a psicopolítica é um dado da emancipação do indivíduo.
Emancipação, porque a psicopolítica é parte do capital social do indivíduo e ele (Lévy) opõe essa metáfora à ideia de habitus, que, sabemos, indica a incorporação constrangedora e involuntária de mecanismos e normas nas práticas dos indivíduos. O capital social comporta o conjunto de recursos materiais e imateriais que o indivíduo pode gerir de forma intencional. O habitus pertence ao modelo teórico do agente, enquanto o capital social ao modelo do ator social.
A constatação da psicopolítica nos termos tratados tem alguma aplicação na conjuntura política que nos envolve? Talvez, tanto para descrever o comportamento de tipo progressista quanto o comportamento conservador, que na verdade incorporou posições que na linguagem política tradicional denominamos de extrema direita.
É só repararmos que há bem pouco tempo era comum identificar os seguidores e apoiadores das políticas e lideranças de direita (no Brasil, quase sempre extrema) como alienados, despolitizados, desinteressados pelos rumos da sociedade e, portanto, vítimas fáceis e instrumentalizáveis pelos interessados em reproduzir as formas de dominação e exploração.
Embora, haja um prazer generalizado junto aos progressistas de denominar os apoiadores da extrema-direita, de gado, gado eles não são. São atores políticos, mesmo os progressistas começam a denominá-los como militantes, beneficiados de uma psicopolítica que os emancipa, mas, ao mesmo tempo, desesperados com o potencial libertador dessa emancipação, dispostos a serem tutelados, a negar sua própria autonomia e a dos outros, com intuito de conservar a todo custo aquilo que na sociedade de indivíduos, por meio da psicopolítica foi perturbado.
A psicopolítica fez uma parte da população perceber seu mundo (energizada por várias teorias da conspiração) como uma realidade sob ameaça, uma ameaça a ser combatida a todo custo. Pensamos que considerar esse ponto de vista, é uma oportunidade a não ser desperdiçada.
Jaime Tadeu Oliva é geógrafo e professor do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). Pesquisa temas relacionados às realidades urbanas e às questões tecnológicas nas práticas espaciais.
Crédito da foto da página inicial: Nara Quental (grafite do Beco do Batman, em São Paulo)
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