Chegou-se a dizer que a pandemia causada pelo Covid-19 seria “democrática”, pois o vírus não discrimina ninguém. Mas, em meados de março de 2020, a notícia de que uma das primeiras mortes no país pela doença tinha sido de uma doméstica, infectada pelos patrões que haviam voltado da Itália, já mostrava que, no Brasil – assim como quase tudo por aqui – ele não seria democrático. O vírus escancararia as desigualdades sociais e a nossa história baseada em exclusão.
Segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), em fevereiro de 2020, 24,2% da população brasileira estava coberta por planos de saúde (número, aliás, em queda com a crise no mercado de trabalho e que deve cair ainda mais com o avanço do desemprego projetado para o país). Porém, a quantidade de leitos de UTI no Brasil – grande demanda de parte dos infectados pelo Covid-19 – é dividida praticamente meio a meio entre o setor de saúde suplementar (comumente chamado de setor privado) e o SUS. Ou seja, para os que contam somente com o SUS neste momento, a pandemia pode ter impactos mais fortes.
Por isso, estudos – inclusive um assinado pelo secretário de Vigilância do Ministério da Saúde – projetam a possibilidade de “estatizar” leitos de UTI em hospitais particulares, aos moldes do que foi feito na Espanha.
Aqui gostaria de chamar a atenção para um aspecto em especial da nossa desigualdade: a desigualdade racial. Algumas notícias de jornal já começam a mostrar que, embora não sejam os mais infectados pela nova doença (ponderando também que há grande subnotificação de casos no país pela falta de testes), os negros estão morrendo mais que os brancos pela doença. Os dados, até agora, mostram que pretos e pardos (negros) são 1 em cada 4 hospitalizados por Covid-19, mas 1 em cada 3 mortos.
Negros possuem maior índice de comorbidades associadas, sim, porém por razões socioeconômicas estão também mais vulneráveis ao coronavírus. São minoria nos empregos de colarinho branco que podem fazer homeoffice, mas são maioria entre os pobres e informais que precisam ir para a rua porque a Renda Básica Emergencial demorou a ser operacionalizada ou entre os que competem/competirão por vagas no SUS. Vulnerabilidades sanitárias e socioeconômicas atingem em cheio essa população e a coloca em ainda maior risco.
Segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, há maior presença branca na administração pública e informação/financeiras, grupos de atividades com melhores condições de trabalho. Os negros se fazem mais presentes, segundo estes dados de 2018, na agropecuária, na construção, no comércio, no transporte, alojamento/alimentação e nos serviços domésticos, setores que devem ser mais impactados.
Sobre essa última categoria, para o ano de 2015, as mulheres negras eram 59,7% dos trabalhadores domésticos no Brasil, uma das profissões mais vulneráveis à coronacrise em termos sanitários (relembrando o primeiro parágrafo do texto) e econômicos. É importante destacar também que negros são maioria nos postos de trabalho sem contribuição à previdência social, mais uma fragilidade nesse contexto de crise.
Levantamento do Sebrae mostra que em 2014 havia mais empresas cujos donos eram negros que brancos. Porém, os negros são maioria entre os conta-própria (54%) e os brancos maioria entre os empregadores (67%). Entre os Microempreendedores Individuais (MEIs), 46% se declararam brancos, 42% pardos, 9% pretos (ou seja, 51% negros), 2% amarelos e 1% indígena em 2015.
Há indicativo de que muitos MEIs sejam trabalhadores de aplicativos, sobre os quais há falta de dados nacionais em especial quanto à raça (e que se expõem ainda mais nesse período de pandemia).
Quanto aos beneficiários do Programa Bolsa Família (PBF), dos 12.677.749 beneficiários em maio de 2016, 9.438.131 eram negros. Aliás, o PBF tem sua cobertura em queda durante o ano de 2019, com ampliação da fila para o programa. O recente anúncio do governo de expansão do programa, cuja demanda deve aumentar nesse período de crise, sequer dará conta de zerar a atual fila. Por outro lado, o fato de que os beneficiários do PBF estejam “automaticamente” incluídos no programa de Renda Básica Emergencial é um ponto positivo.
Sobre as favelas, estas podem ser locais de rápida disseminação do Covid-19, pois as condições de moradia e saneamento são precárias, somados ao fato de que muitos dos que ali vivem têm inserções precárias no mercado de trabalho e ficam mais vulneráveis em momentos de crise. 72% dos moradores de favelas se declaram negros .
Quanto à população de rua (exposta, com fragilidades de saúde e sem poder fazer “quarentena”), há poucos dados em escala nacional. Uma publicação do Ministério da Saúde de 2014 aponta que 72,8% das crianças e adolescentes em situação de rua são negros. Já pesquisa de 2008 do extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome mostra que 67% das pessoas em situação de rua são negras.
Ainda, em plena pandemia o governo Bolsonaro pretende remover quilombolas (aqueles que de forma brutalmente racista comparou a gado) na região de Alcântara.
Por fim, no sistema carcerário, que já está sendo duramente atingido pelo vírus, como temos notícias no Complexo da Papuda, por exemplo, 61,7% dos presos são pretos ou pardos.
As políticas sociais que poderiam dar apoio a esta população estão gravemente subfinanciadas, em especial a partir da aprovação da Emenda Constitucional 95/2016. Assim, o Brasil chega à coronacrise com menos instrumentos para rebater seus efeitos, com o SUS subfinanciado e com a população mais vulnerável.
A pandemia escancara as desigualdades, os contrastes. Ainda mais no país que teve 388 anos de escravidão e outros tantos de exclusão. A pandemia não é democrática porque o Brasil não é.
Crédito da foto da página inicial: Arquivo Agência Brasil
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