Publicado originalmente no Instituto Humanitas Unisinos
Por Patricia Fachin
A inserção do Brasil na chamada Revolução 4.0 parece algo distante quando analisada do ponto de vista do desenvolvimento da indústria nacional. Sem investimentos públicos específicos para o setor e sem a criação de uma “política de desenvolvimento produtivo, científico e tecnológico voltado a criar competitividade sistêmica para toda a economia brasileira em um momento de mudança do paradigma tecnológico”, a probabilidade é de que a indústria nacional continue sendo “uma mera compradora de bens de capital e serviços tecnológicos”, diz o economista Marco Antônio Martins da Rocha à IHU On-Line.
Marco Antônio Rocha. Foto: Reprodução Youtube
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele explica que seu pessimismo em relação ao desenvolvimento e à competitividade da indústria na era da chamada Revolução 4.0 se dá porque o setor não possui “nem as condições prévias para assimilar o próximo paradigma tecnológico”. A dificuldade, pontua, “não provém da mudança do paradigma tecnológico atual, até mesmo porque não conseguimos internalizar nem o paradigma da Terceira Revolução Industrial de forma satisfatória”.
Ele lembra que a participação da indústria na geração de riquezas no país hoje “é similar à que tínhamos ao final da década de 1940”. A consequência da falta de investimentos e da reestruturação da indústria para se inserir nas mudanças geradas pela revolução tecnológica, adverte, fará com que o Brasil seja “um país de subocupados, dotados de uma pequena indústria com baixa capacidade de geração de empregos e com baixo encadeamento sobre o setor de serviços mais sofisticados”.
Segundo ele, diferentemente do que ocorre no Brasil, os países que disputam a vanguarda tecnológica, como Estados Unidos, China e Alemanha, têm em comum “uma preocupação e um direcionamento da política industrial para uma visão mais sistêmica e menos focada, isto é, de certa forma existe uma preocupação maior em repensar o sistema manufatureiro nacional como um sistema propriamente dito, em que o todo é tão importante quanto as partes e, nesse sentido, os vínculos de cooperação e a criação de infraestrutura apropriada importam muito”, assegura.
Marco Antônio Martins da Rocha é graduado em Economia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Realizou mestrado, doutorado e estágio pós-doutoral na Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Atualmente, é professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Núcleo de Economia Industrial e da Tecnologia NEIT-IE/Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Recentemente, ao comentar a crise da indústria brasileira, que se estende desde 1990, o senhor disse que o Estado brasileiro tem tido dificuldades em reorganizar um projeto industrialista para além do modelo esgotado na década de 1970. Pode nos explicar quais são as dificuldades do Estado na reorganização de um projeto industrialista? Essas dificuldades estão diretamente relacionadas à Revolução 4.0 ou há outras razões?
Marco Antônio Martins da Rocha – Devemos lembrar, em primeiro lugar, que existem inúmeras críticas ao modelo de crescimento econômico experimentado até a década de 1970: foi autoritário, excludente, ambientalmente irresponsável e não rompeu com os vínculos de dependência, sobretudo financeira e tecnológica, que seria necessário para a criação de um autêntico projeto de desenvolvimento. Entretanto, a questão é que, após seu desmonte, tampouco se colocou em seu lugar algum projeto estruturante de um desenvolvimento nacional.
Múltiplas causas
O problema então vem de longa data e são muitas as causas. A questão pode ser colocada como uma incapacidade do Estado brasileiro em criar condições de autonomia relativa para a organização e execução de um projeto de desenvolvimento, que possua continuidade ao longo dos anos, que não seja capturado por interesses particulares, que possua prioridade em relação à alocação de recursos e que seja organizado a partir do primeiro escalão do governo. Então uma das questões centrais é a criação de centros de planejamento do processo que estejam em contato direto com o primeiro escalão do governo e que tenham prioridade na tomada de decisões sobre a política econômica, isto é, que subordine as decisões macroeconômicas a uma diretriz industrialista.
As transformações na economia mundial que ocorreram a partir dos anos 1990, como a ampliação do outsourcing, o deslocamento da produção para a Ásia e a liberalização financeira, entre outras mudanças, dificultaram ainda mais a criação de um bloco político de coesão a um projeto deste tipo, jogando a política econômica completamente para o curto prazo. Então o que vemos é isto: mesmo quando um governo tem um viés industrialista, ele não consegue manter a coesão da política econômica o suficiente para organizar e dar sustentação a um projeto de desenvolvimento nacional.
A dificuldade não provém da mudança do paradigma tecnológico atual, até mesmo porque não conseguimos internalizar nem o paradigma da Terceira Revolução Industrial de forma satisfatória.
Que diretrizes poderiam dar origem a um projeto industrial para o Brasil no atual momento histórico da chamada Revolução 4.0?
A questão é bem mais complexa do que aparenta, principalmente em relação ao estado em que se encontra a indústria nacional. Não conseguimos internalizar o paradigma tecnológico da microeletrônica, somos desprovidos de grandes empresas nacionais com domínio tecnológico nos setores chaves da Terceira Revolução Industrial, então temos um problema imenso em termos de mecanismos para internalizar a produção de bens de alta tecnologia e para disseminar essas tecnologias para o restante do setor produtivo.
Incapacidade da indústria brasileira
Com a crise que se acentua a partir de 2014, perdemos ainda mais empresas nacionais que poderiam atuar nessa área — cujo caso mais emblemático foi a entrega da Embraer à Boeing. Nesse sentido, a economia brasileira está desprovida de empresas que possam responder a estímulos e incentivos da política industrial para atuarem na Manufatura 4.0. Em primeiro lugar, porque, em sua maioria, não possuem a base de conhecimento necessária para a diversificação tecnológica para as novas tecnologias. Em segundo lugar, porque carecem de financiamento adequado, infraestrutura pública de pesquisa e políticas que garantam ganhos de escala necessários a uma indústria nascente. Isto não significa que as grandes empresas brasileiras não possam ser usuárias dessas novas tecnologias ou até mesmo desenvolverem algumas inovações incrementais, mas não possuem capacidade para ir além disso.
Então, é necessário criar as condições para se reconstruir certa capacidade da indústria brasileira em reagir às políticas industriais. Para isso, é necessária a criação de uma infraestrutura mais adequada às tecnologias 4.0, recuperar a capacidade de fazer políticas industriais pelo lado da demanda — como compras governamentais e encomendas tecnológicas — e melhorar a capacidade do governo em cobrar contrapartidas do setor privado para evitar que a política se converta em mera fornecedora de subsídios. Além de uma tarefa mais que urgente, que é convencer a opinião pública da necessidade de ter o Estado como um indutor ativo desse processo e de dispor dos instrumentos necessários, como as empresas públicas e os instrumentos públicos de financiamento.
Creio que a melhor saída seria aproveitar todas as mudanças que as tecnologias 4.0 irão promover nos serviços públicos e na vida urbana para utilizar isso como uma plataforma para se iniciar a montagem de uma política científica e tecnológica mais sistêmica. Se abrirá um mercado significativo para o desenvolvimento de aplicações customizadas das novas tecnologias no contexto dos serviços públicos. Entre as vantagens dessa proposta, está a possibilidade de desenvolver políticas capazes de reativar as políticas de compras governamentais e de gerar contrapartidas mais claras para a sociedade, lembrando que um dos maiores problemas da política industrial no Brasil atual é sua falta de legitimidade perante a opinião pública.
Como a indústria brasileira se insere na chamada Revolução 4.0?
Não se insere, isto é, será uma mera compradora de bens de capital e serviços tecnológicos. Como disse, não possuímos nem as condições prévias para assimilar o próximo paradigma tecnológico. O que sobrar da indústria brasileira irá sobreviver eliminando postos de trabalho, aumento do grau de automação de suas linhas de produção e sendo cada vez mais importadora de equipamentos, insumos e, em muitos casos, bens acabados.
Quais são os efeitos da Revolução 4.0 na indústria hoje? Como ela tem afetado a indústria brasileira e, de outro lado, quais setores da indústria têm aderido à modernização tecnológica e quais estão ficando para trás?
O Brasil ainda possui um conjunto pequeno, mas com porte significativo de grandes empresas, algumas com algum grau de internacionalização e inseridas em cadeias globais de valor, que possuem capacidade para internalizar as tecnologias de produção e a manufatura de alguns bens com tecnologia atualizada. Isto talvez seja menos uma questão de setor e mais uma questão de tamanho da empresa e forma de atuação, mas, de modo geral, a adesão será basicamente como compradores e usuários das novas tecnologias em seus processos produtivos.
A Manufatura 4.0 terá efeitos amplos nos próximos dez anos sobre toda a indústria mundial, alguns interessam mais particularmente ao Brasil por conta de sua matriz industrial. A ampliação dos processos de automação será em maior parte sobre as linhas de produção dos setores típicos da Segunda Revolução Industrial, mas intensiva em tarefas rotineiras, ou seja, a tendência é que os setores em que a indústria brasileira é especializada estarão entre os mais afetados em termos de eliminação de postos de trabalho. Sem que nada esteja sendo feito em relação ao que fazer com as pessoas afetadas pela eliminação desses postos de trabalho.
Outra questão que já está sendo discutida é como as tecnologias 4.0 irão reverter o processo de outsourcing, por conta dos ganhos de competitividade que os sistemas produtivos mais integrados possam ter. Nesse sentido, as políticas de inserção nas cadeias de valor e atração de investimento estrangeiro produtivo terão pouca eficácia em um momento de retração das cadeias globais de valor. Nesse ponto, a política econômica brasileira também parece estar na contramão do seu tempo.
Em termos de políticas públicas, há um planejamento para que a indústria brasileira invista em tecnologia e automação? Quais são os desafios nesse sentido?
Tudo que tenho visto é muito incipiente e terá provavelmente poucos efeitos. Temos que separar as políticas públicas nesse sentido. Uma coisa é uma política de competitividade, restrita a algumas empresas de grande porte, que fornece crédito e outras facilidades para que as empresas possam assimilar processos produtivos da Manufatura 4.0 e/ou atualizar seu mix de produtos. Essas políticas podem permitir a sobrevivência de um conjunto de empresas, mas possui pouca capacidade de reverter o processo de desindustrialização e promover a real internalização produtiva das novas tecnologias. Outra coisa é uma política de desenvolvimento produtivo, científico e tecnológico voltado a criar competitividade sistêmica para toda a economia brasileira em um momento de mudança do paradigma tecnológico; e é disso que se trata.
O que diferencia os planos de política industrial de países como Alemanha, EUA, Reino Unido, China e Índia dos planos brasileiros?
Essa pergunta é importante para contextualizarmos melhor a conjuntura em que nos encontramos. Inicialmente, é importante dividir os países entre aqueles que disputam a vanguarda tecnológica — como EUA, Alemanha, China e, em bem menor grau, Reino Unido — daqueles que procuram encontrar seu espaço na mudança de paradigma tecnológico — como Índia — e daqueles que estão simplesmente ignorando a questão — como Brasil.
Começando pelos países que estão disputando a vanguarda em alguma tecnologia chave da Manufatura 4.0, em todas essas políticas industriais existem elementos em comum que permitem alguma análise sobre como estão se transformando os sistemas nacionais de inovação. A primeira característica é um certo consenso sobre as tecnologias e a convergência das trajetórias tecnológicas que irão se constituir e formar as chamadas tecnologias habilitadoras da Manufatura 4.0, que em última instância é o que inclusive permite fazer algumas previsões sobre o que será a Quarta Revolução Industrial.
A segunda característica é o esforço na descentralização geográfica dos sistemas de inovação, procurando se aproximar mais dos distritos produtivos, para facilitar justamente o desenvolvimento de utilizações customizadas das tecnologias e a coordenação entre empresas e centros de pesquisa. Nesse sentido, o sistema alemão já possui certa vantagem.
A última característica que gostaria de ressaltar é que em todos os casos existe uma preocupação e um direcionamento da política industrial para uma visão mais sistêmica e menos focada, isto é, de certa forma existe uma preocupação maior em repensar o sistema manufatureiro nacional como um sistema propriamente dito, em que o todo é tão importante quanto as partes e, nesse sentido, os vínculos de cooperação e a criação de infraestrutura apropriada importam muito.
No outro lado, estão países como a Índia, que buscam conciliar a criação de capacitação em algumas tecnologias chaves, como nanotecnologia e software, com a promoção estratégica de alguns setores, como a indústria de defesa, ao mesmo tempo em que se aproveita do baixo custo laboral para promover também políticas de atração de investimento para internalizar elos das cadeias produtivas globais, ainda que nos últimos anos o Make in India tenha se tornado cada vez mais uma política de atração de investimento estrangeiro direto. Repare que esse tipo de política depende de uma série de circunstâncias, precisa de certa infraestrutura de pesquisa, uma base manufatureira relevante e de salários comparativamente baixos em termos internacionais.
Essa contextualização é importante para situar o Brasil na conjuntura internacional. Estamos em um cenário de reorganização de grandes políticas industriais e possível proliferação de mecanismos de proteção ao sistema produtivo local, como a defesa de empresas nacionais consideradas estratégicas da aquisição estrangeira, por exemplo. No outro lado, os países de industrialização mais tardia estão procurando definir estratégias para dar prosseguimento aos seus processos de industrialização. A dramaticidade da situação brasileira decorre justamente da incapacidade de definir um projeto de desenvolvimento nacional diante das transformações no cenário internacional.
O mercado de trabalho brasileiro já está sendo reorganizado por conta da Revolução 4.0?
A questão não é reorganizar o mercado de trabalho, e sim a estrutura produtiva brasileira. Não existe reforma no mercado de trabalho possível que dê conta de criar competitividade para uma indústria obsoleta e sem perspectiva diante da conjuntura internacional. Na situação em que se encontra a indústria nacional, ela irá se manter pressionada pela competição de países de industrialização recente, com custo de trabalho que não pode ser replicado dada a estrutura social brasileira e seu processo de urbanização, e na outra ponta pelo incremento da competitividade das economias desenvolvidas através do progresso tecnológico.
Logo, ou se constrói a base para uma política industrial de grande porte, capaz de fazer frente aos desafios das mudanças recentes na economia global, ou iremos naufragar enquanto nação.
Quais são suas projeções para o futuro do mercado de trabalho no Brasil por conta das mudanças geradas pela Revolução 4.0?
Seremos um país de subocupados, dotados de uma pequena indústria com baixa capacidade de geração de empregos e com baixo encadeamento sobre o setor de serviços mais sofisticados. Os dados do mercado de trabalho já apontam nesse sentido, o que veremos será apenas o aprofundamento do quadro que já está em andamento.
Deseja acrescentar algo?
Sim. Creio que desde Getúlio Vargas a economia nacional não se encontrava em uma situação tão colonial, estamos regredindo aceleradamente do ponto de vista da divisão internacional do trabalho. Acumulamos ao longo do século XX uma profunda e sofisticada construção teórica crítica à inserção internacional da economia brasileira enquanto exportadora de produtos primários; está na hora de recuperarmos essa tradição. Isso não significa recuperar um desenvolvimentismo com bolor dos anos 1970, mas recriar as bases para construir uma inserção mais exitosa na divisão internacional do trabalho.
A participação da indústria na geração de riqueza no Brasil hoje é similar à que tínhamos ao final da década de 1940. Obviamente não é a mesma indústria daquele tempo, mas é um dado emblemático do tamanho da crise industrial brasileira. A indústria brasileira tornou-se, nas últimas décadas, altamente importadora de insumos e produtos acabados, reservada a nichos com baixa competição no mercado interno ou com vantagens competitivas baseadas na utilização intensiva de recursos naturais, com raras exceções.
Atualmente presenciamos um ataque às universidades públicas e centros de pesquisa, com um desmonte sistematizado dos instrumentos de fomento e proteção ao setor produtivo local. As dificuldades em se realizar um processo de industrialização hoje em dia são ainda muito maiores do que no período fordista, então a resposta a esse desafio terá que passar por uma profunda mudança na estrutura do Estado brasileiro e em toda a estrutura da política econômica. É hora de mudar o paradigma de política econômica instaurado nos anos 1990.
Crédito da foto da página inicial: Agência Brasil
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