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A mais ‘nova’ forma de fazer política no Brasil

A foto do abraço “amigo” entre o chefe do Executivo e um alto representante da Suprema Corte do Judiciário brasileiro mostra que, de fato, voltamos à República Velha.

O jantar surpresa (para a sociedade, óbvio) realizado no dia 3 de outubro de 2020, fora da agenda institucional do Estado, na casa de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), entre o chefe do executivo, presidente do Senado Federal e o indicado a cadeira do STF, revelou a degradação das relações do Estado brasileiro.

As instituições e seus representantes, que deveriam zelar pela independência entre os poderes com adequado decoro e sem laços pessoais de finalidade política, cuidando para que reuniões e encontros sejam regidos segundo agendas públicas, hoje parecem caminhar em sentido contrário, sendo tocadas no modo camaradagem e da maior cordialidade elitista possível, ao estilo mais antigo da Velha Política.

Ao que tudo indica, a tendência se confirmou com a organização pelo presidente do Tribunal de Contas da União, José Múcio Monteiro, e os ministros do TCU Bruno Dantas e Vital do Rêgo, de um jantar de conciliação entre o ministro da economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, no dia 6 de outubro, na casa de Dantas.

O TCU que deveria manter-se equidistante dos demais poderes para exercer sua função de fiscalizador de forma imparcial das ações do Executivo, Legislativo e Judiciário, está promovendo exatamente o oposto enquanto instituição, numa verdadeira balbúrdia institucional, para dizer o mínimo.

O impacto de tais práticas, que eliminam o valor fundamental da impessoalidade no trato da coisa pública, já foi profundamente analisado na primeira metade do século passado. O grande intérprete do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, alertou que esta é uma das raízes do nosso atraso. Em sua monumental obra “Raízes do Brasil”, publicada em 1936, o intérprete afirma que o Brasil da República Velha tinha fortes conexões, ainda não rompidas, com o passado colonial e o Império.

A “lei” era a palavra do patriarca e os membros da sociedade se achavam associados, uns aos outros, por sentimentos e deveres pessoais do patriarca, e nunca por interesses próprios ou ideias coletivas. O espaço de atuação do homem moderno, aquele munido com direitos iguais, era limitadíssimo ou praticamente inexistente nessa sociedade, visto que a vontade privada do senhor (elite endinheirada) sempre precedera ao espaço público.

“O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família” (HOLANDA, 1995, p. 82). Essa cultura senhorial criou profundas raízes nas relações sociais brasileiras pelo seu longo tempo de duração e legou as gerações futuras o caráter desigual dos indivíduos na sociedade. De tal modo que na maior parte da história do Brasil, como observou o historiador e cientista político José Murilo de Carvalho, não houve de verdade um poder que “pudesse ser chamado de público, isto é, que pudesse ser a garantia da igualdade de todos perante a lei ou algo mais próximo dos direitos civis” (2010, p. 28).

A vida doméstica e familiar (da elite) oferecia o parâmetro para qualquer tipo de contato e contrato. O homem cordial é a síntese de todo esse processo e bem distante do congênere europeu e norte americano, cujos parâmetros são as leis e os processos aplicados de forma impessoal para todos. Isto não significa que não havia e nem há qualquer grau de pessoalidade nos processos das sociedades desenvolvidas, mas que este grau se encontra em nível muito menor, pois não existe mundo perfeito. É um processo concreto de tendências mais modernas e mais atrasadas…

Segundo Holanda, nessa análise há uma clara oposição entre a lógica cordial nacional mediada a partir das relações pessoais e a “racionalização” conduzida pela divisão do trabalho, calculista e embasada numa zona pública das relações impessoais.

Na história da vida privada do Brasil, o historiador Fernando Novais afirma que o público e o privado se apresentavam invertidos na inserção nos quadros da civilização ocidental e havia no Brasil da época uma maneira peculiar de integração. A visão do Frei Vicente do Salvador descrita a um bispo de Tucumán no dia 20 dezembro de 1627 exemplifica bem a interpretação atribuída ao Brasil: “Verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa” (1997, p. 12).

Isto explica a força do pequeno grupo de famílias super-ricas (mercado) nas decisões centrais do país. A clássica ruptura entre família e Estado nunca existiu de forma completa e acabada no Brasil, o grau de influência das vontades pessoais de um pequeno grupo endinheirado se cristaliza no Estado brasileiro.

Por isso, para Holanda, “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-entendido”. Ele explica que apenas assimilamos o sistema de ideias impessoal do liberalismo democrático na medida em que não vá contra a nossa tradição de comando patriarcal desse pequeno grupo de famílias super-ricas. Entre nós, efetivamente incorporam-se esses princípios até onde coincidam com a negação pura e simples de uma autoridade incômoda do Estado racional moderno[1], “confirmando nosso instintivo horror às hierarquias e permitindo tratar com familiaridade os governantes” (HOLANDA, 1995, p. 160).

Não à toa que quem controla o Estado, verdadeiramente falando, é a elite do atraso composta por essas poucas famílias e denominada como Mercado Doméstico. Este mercado patrocina (compra) a maioria dos políticos do Congresso, no Executivo e controla, por meio da opinião pública dos maiores meios de comunicação, as decisões do Judiciário brasileiro.

A imagem personalista do abraço entre o seu Jair e o seu Dias é a suprema decadência do Estado brasileiro, advinda no bojo das inúmeras transgressões e retrocessos do Golpe de 2016.

Hoje, nós somos, sim, uma grande República das Bananas: a colônia dos tempos atuais.

E a única forma que temos de superar este subdesenvolvimento crônico é por meio das ruas, com a elevação da consciência de classe para a maioria da população.

Referência:

CARVALHO, J.M. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 14a edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

NOVAIS, F. A.. Condições de privacidade na colônia. In: Fernando A. Novais; Laura de Mello e Souza. (Org.). História da vida privada no Brasil. 1ed.São Paulo: Companhia das Letras, 1997, v. 1, p. 13-40.

[1] Por isso a Reforma Administrativa bolsonarista é tão defendida nos grandes meios de comunicação, pois retorna o funcionalismo público à condição do servidor público de cabresto, aquele que está condicionado a obedecer as preferências dos seus superiores e não as regras da lei.

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