A laqueadura tubária é um procedimento cirúrgico voluntário definitivo, voltado a neutralizar a fertilidade feminina por meio da amarração ou corte das trompas, também conhecido como “ligadura de trompas”. Usualmente, o procedimento serve para controlar o crescimento demasiado do número de filhos na unidade familiar. Obtido o número mínimo de dois filhos e ou diante de risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto, pode-se optar pela sua prática. É um poderoso instrumento de controle populacional.
A analogia com o momento político, econômico e social do país é totalmente pertinente. Os eventos que se sucederam desde ao Golpe Parlamentar de 2016 sugerem que o Brasil passa por uma grande cirurgia de laqueadura tubária involuntária, em que a fertilidade do seu lado mais produtivo e promissor vem sendo esterilizado. A famosa cordialidade do brasileiro carregada de amor, empatia, inteligência e vontade de se desenvolver está sendo neutralizada para construção de uma sociedade calcada no ódio, intolerância, xenofobia, estupidez e subdesenvolvimento perpétuo.
Nesse particular, talvez o mais crítico dos eventos tenha acontecido antes mesmo do golpe propriamente dito.
Quando se imaginou que no país do futebol uma população inteira jogaria contra sua própria nação em plena Copa do Mundo de 2014 e Olimpíadas de 2016? Brasil, o país do futuro, se mostrou totalmente pessimista frente aos maiores eventos mundiais.
A pergunta que fica é: por que o ódio venceu o amor e a estupidez se sobrepôs à racionalidade?
Era óbvio, a manifestação de junho de 2013, em função do aumento passagem no transporte público, não tinha um poder tão grande para isto. Havia (ainda há), com certeza, outros interesses e forças econômicas, políticas e sociais por trás do movimento que sabotou o país.
O debate sobre o momento pelo qual passava o país foi desonesto, sem qualquer respaldo nos dados científicos, tal como ocorre nesse exato instante. Sempre se soube que o PT não iria resolver todos os problemas do país. Trezentos e cinquenta anos de escravidão não são facilmente superados, mas a gestão petista colocou, mesmo com todas as debilidades, o país numa trajetória menos atrasada social e economicamente, e pavimentou opções de futuro mais republicanas.
Dentre os exemplos mais proeminentes está a inflexão na trajetória do número de mortes por falta de ingestão ou absorção de nutrientes. A morte em função da fome parou de crescer, mas os níveis continuaram elevados. A significativa diferença foi que o número de óbitos ficou menor a cada ano que se passava.
Foi nessa ausência de entendimento popular que as forças “ocultas” do atraso se apoiaram. Apesar do forte crescimento econômico e queda da miséria, o país estava se ajustando e alguns resultados leveriam mais tempo para se concretizarem.
Os homicídios por arma de fogo são exemplo disso. O Estatuto do Desarmamento, em termos médios, não reduziu drasticamente a taxa, mas interrompeu o forte crescimento que vinha dos anos 1990. Sendo o primeiro passo para promoção das políticas que pudessem reduzir de forma consistente as taxas. O que explica, em parte, a flutuação da taxa homicídio em crianças 0-4 no gráfico 3.
Nessa linha, a análise da laqueadura tubária se encaixa novamente na realidade geral do Brasil. A partir do II Plano Nacional de Políticas para Mulheres, em 2008, foram promovidas ações para o melhor uso das práticas do procedimento. Nas regiões mais pobres, além da promoção da educação sexual, foram fornecidos métodos e medicamentos contraceptivos a baixo custo pelo programa Farmácia Popular e, também, a adoção do equilíbrio das ações. Os homens passaram a se responsabilizar um pouco mais diante da decisão, ao aderir a vasectomia.
Essas medidas proporcionaram desafogamento das pressões sociais sobre as mulheres e trabalharam a questão segundo critérios racionais, principalmente em relação ao uso eleitoreiro da cirurgia. A falsa ideia de redução da violência por meio da esterilização dos mais pobres foi sendo desconstruída, ao explicar que as pessoas não são pobres ou violentas porque possuem mais filhos, elas são assim por viverem, exatamente, em condições de pobreza e violência. Os filhos nada têm a ver com isto.
Mas nada disso adiantou, mais uma vez caímos na armadilha da corrupção estatal ou política (o mercado nunca aparece como agente corruptor) para justificar as transgressões ao Estado de Direito Democrático. A operação Lava Jato esterilizou a democracia para rapina nacional e internacional das riquezas do país. Tudo isso sob omissão do Supremo Tribunal Federal (STF), chantagem do Exército, as instâncias civis e apoio irrestrito do mercado financeiro por meio da grande mídia. Deixando claro que o bolsonarismo não é um acidente histórico, ele é, antes, um projeto de nação subdesenvolvida calcado em ações reacionárias ao desenvolvimento.
Num país onde, até 2008, não havia luz para todos, o cancelamento arbitrário de 3,2 milhões de títulos de eleitores pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em sua grande maioria atingindo em cheio a região de maior apoio à ala progressista, o Nordeste, sugere uma monumental insensibilidade à realidade nacional.
De tal modo que a vitória do candidato da direita brasileira expressa fortes indícios de sabotagem do pleito. A entrega do patrimônio nacional e quebra do Estado Desenvolvimentista sempre interessou e interessará a qualquer nação estrangeira, mas a adesão interna a esse projeto é reveladora do espírito empresarial do brasileiro. Qual elite ou militar entrega praticamente de graça seus setores mais estratégicos como foi feito com a Embraer, Eletrobrás e a Petrobrás? Qual elite ou militar se nega a desenvolver para exercer um papel menor no mundo dos negócios?
O Brasil deixou de adotar a tática norueguesa de desenvolvimento, cujas bases dos recursos naturais foram alavanca para o desenvolvimento e pesquisa do país [Senador José Serra do PSDB com seu projeto de Projeto de Lei 131/2015 retirou a aplicação dos royalties do petróleo em educação (75%) e saúde (25%), conforme previsto pela sanção da presidente Dilma Rousseff, em 2013]; para aderir, com todo respeito ao país citado, ao padrão da Arábia Saudita: de integração subalterna aos interesses norte-americanos com crescimento interno da riqueza privada para alguns poucos e ampliação da probreza humana. Vale lembrar que o Pré-Sal está avaliado em R$ 40 trilhões, sendo quase seis vezes o PIB brasileiro de R$ 6,8 trilhões, em 2018.
A miséria moral desse projeto é tão avassaladora que encarcerou o país inteiro num projeto menor de nação, confirmando o que Oliveira Vianna havia analisado 60 anos atrás. No Brasil, a clássica elite esclarecida dos países europeus que age em favor do desenvolvimento dos grandes problemas nacionais parece não vingar por aqui. E a classe média, ignorante e alheia ao seu passado, ferve em ódio aos pobres por não refletir sobre as verdadeiras raízes do seu atraso.
Por isso, é importante compreender que o bolsonarismo é uma operação, em larga escala, para a esterilização do futuro do Brasil enquanto nação civilizada e próspera.
Somente uma revolução social amplamente amparada nas massas populares pode reestabelecer a trajetória virtuosa que se iniciou há 13 anos. Talvez, um bom ponto de partida para novos horizontes seja reeleitura de alguns clássicos, como “A Revolução brasileira”, 1966, do ilustre intéprete do Brasil Caio Prado Júnior, e novas literaturas que aproximem as questões pendentes do desenvolvimento brasileiro com as estratégias de ação. “A democracia impedida” do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, é essencial nesse tocante.
“Mas relativa promoção nos níveis de renda e conforto dos assalariados costuma acontecer, com efeito, após longo período de carência, não por obra de “transbordamentos” da riqueza, mas de duras lutas das classes subalternas”.
O foco deve ser a formação da consciência de classe, a luta por uma qualidade de vida melhor (bens coletivos) deve ser a escola de formação para cidadãos críticos e racionais. Poder comprar televisão, carro, celular, computador e fazer viagens nacionais internacionais é importante, mas mais importante ainda é saber que existem bens que não podem ser comprados ou negociados individualmente, pois são de todos e para todos e, portanto, não são de ninguém (saúde, educação, previdência, transporte, habitação e segurança).
Referência:
Prado Jr, Caio. A revolução brasileira. 7. ed. São Paulo, SP: Brasiliense; 1987.
Santos, Wanderley Guilherme dos.. A democracia impedida: o Brasil no século XXI. 1ª. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2017. v. 1. 188p .
Vianna, Oliveira. Instituições politicas brasileiras. 3. ed. Rio de Janeiro, RJ: Record, 1974. 2v.
Crédito da foto da página inicial: Mateus Pereira/Secom
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